Escrita do Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio no RS: experiências dos redatores de Ciências Humanas

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O Governo do Estado do RS, através da Secretaria Estadual de Educação, realizou Consulta Pública do Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio durante os dias 30 de novembro e 14 de dezembro de 2020. Para chegar à finalização da escrita deste documento, que pode ser apreciado, criticado e receber contribuições de professores e professoras e da sociedade gaúcha, outros passos importantes foram dados, como o Processo de Escolha de Redatores do Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio.

No dia 21 de setembro de 2020, foi lançado edital de Transferência Temporária para Dedicação Exclusiva à Escrita do Currículo do Novo Ensino Médio do Estado do Rio Grande do Sul. Foram anunciados no dia 30 de outubro os professores e professoras selecionados: 36 professores, sendo 18 titulares e 18 suplentes, conforme a quantidade de vagas por componente curricular e área do conhecimento previstas no edital.

A partir de então, os professores e professoras selecionados/as passaram a vivenciar uma dinâmica que mesclou leitura, formação e atualização de conhecimentos do Novo Ensino Médio com a produção e escrita do Documento. Houveram dinâmicas de escrita pessoal, em duplas ou trios e por áreas de conhecimento.

O grupo de Ciências Humanas e suas tecnologias foi composto pelos educadores/as: Eloenes Silva, Claudionei Vicente Cassol, Cristina Schneider, Giseli Vecchetti e Nei Alberto Pies. Estes professores e professoras, nesta matéria, relatam suas expectativas, suas experiências e suas aprendizagens pessoais e coletivas decorrentes de sua participação na Escrita do Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio.

Seus depoimentos e reflexões retratam o processo intrínseco do desafio pessoal e coletivo da escrita do Referencial, bem como apontam algumas análises da complexa realidade em que se encontra a implantação do Novo Ensino Médio no RS e no Brasil.

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Um time de professores e professoras engajados/as

“A escolha por me inscrever e concorrer a uma vaga como redatora do Referencial Gaúcho Curricular do RS se deu pela vontade de contribuir ainda mais com a educação e os processos do nosso estado. Ser selecionada foi para mim motivo de muito orgulho, afinal, muitos outros passaram pelo processo, que passou por uma entrevista, com perguntas chaves sobre o olhar sobre a educação, minha prática em sala de aula e a produção acadêmica, além de um grande desafio de elaborar um projeto e enviar nas duas horas seguintes a entrevista, revelando ali que a escrita do referencial precisaria de jogo de cintura quanto aos horários, disponibilidade, agilidade e boas práticas.

O time das humanas sem dúvida foi uma grata surpresa, pessoas com pensamentos distintos, mas muito capacitados, uma troca sensacional, com muito debate, boas risadas, muitas horas de reuniões e alinhamentos, alguns sufocos, algumas leituras de comentários que causaram revolta ao grupo, mas muita humildade para compreender que sim, as demandas eram muitas e ouvir os outros colegas, ouvir a sociedade era essencial para acertar o rumo e tentar incluir o máximo de questões para esse Referencial que busca integrar a todos, analisar as múltiplas juventudes e incluí-las.

É claro que a escrita não começou do zero, muitos caminhos já haviam sido trilhados, muitas pessoas já haviam contribuído e respeitar esse caminho que iniciou com a BNCC e todas as pesquisas e debates realizados pela SEDUC-RS com professores e comunidade escolar das Escolas Piloto. Era, ao mesmo tempo um grande desafio, pois nos limitava em muitos pontos, mas uma tranquilidade de por onde caminhar.

O apoio da Secretaria de Educação e do nosso coordenador Anderson foram essenciais para esta escrita ocorresse da forma que foi e no tempo em que ocorreu (cerca de dois meses de trabalho). Vale ressaltar que sabemos que isso nos impôs limites, até mesmo no pensar mais temáticas, na forma de colocar, na possibilidade de maiores releituras sobre as temáticas e os desafios do Ensino Médio hoje.

O time composto por 18 professores se mostrou um belo exemplo do potencial da educação do RS, com pessoas altamente qualificadas, professores humanos e que buscam o melhor para o ensino médio. Todos muito engajados e participativos, e a parte final de correções e formatações mostrou que todos vestiram a camisa para valer, foi um sufoco, muitas horas de trabalho, algumas horas de atraso, mas no fim o Referencial escrito, formatado e unido entregue ao Conselho Estadual de Educação.

Sem dúvidas, a entrega ao Conselho Estadual de Educação, no dia 18 de dezembro de 2020, foi um misto de alegria por ter vencido, de cansaço pelas longas horas de trabalho, mas de orgulho de ter feito parte desse projeto que nos enriqueceu muito com maior domínio da legislação sobre educação, sobre os desafios que viram, mas a certeza que tudo está sendo pensado para melhorias, para maior integração e maior aprendizado dos nossos jovens.

Que venham novas etapas, novos desafios e uma educação mais plural, integradora e que leve em respeito às diferenças, com mais diálogo entre professores e alunos para um ensino de melhor qualidade e maior abrangência.

(Redatora Giseli Veccetti) gi_giseliv@yahoo.com.br

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Uma experiência rica e desafiante

Quando chegou a notícia de que haveria uma seleção para redatores do Referencial Curricular do Novo Ensino Médio no RS, confesso que, logo, não me atraiu muito. Depois de certa insistência de uma pessoa que considero muito, a pedagoga e escritora Gládis Pedersen, comecei a refletir. Ela, sim, eu considero uma grande referência de conhecimento do Ensino Religioso, de sua legislação e das nuances do pensar contemporâneo sobre este componente curricular.

Passou um dia. Resolvi conhecer o edital e, como já era o último dia de inscrições, fiz minha inscrição para a seleção de redatores. Não alimentei nenhuma grande expectativa com possibilidades de ser escolhido, mas aguardei o processo.

Quando marcaram a entrevista, pensei comigo: “vou com aquilo que sou e que sei. Se a minha modesta experiência de escritas e de conhecimentos sobre educação e ensino religioso forem úteis, então que sejam”. A entrevista foi uma grande experiência. Durou em torno de duas horas. Achei muito legal e interessante ser inquirido sobre meus conhecimentos e minhas práticas por uma senhora que, de cara, demonstrou empatia e muito conhecimento. A tensão maior foi construir um breve plano de ação, com uma tarefa de aula interdisciplinar, em pouco tempo.

Quando chegou a notícia da aprovação, fiquei estupefato, feliz e atordoado. Afinal, precisava me desligar e desprender do meu serviço de orientação educacional na escola, mesmo que em tempos de pandemia.

A formação que tivemos, no início do nosso trabalho, foi importante, mas sempre parecia insuficiente para dominarmos códigos, referências e conceitos já afirmados pela BNCC e por outros documentos que embasam o Novo Ensino Médio. O entrosamento com os colegas para as primeiras escritas coletivas foi um grande desafio. Aos poucos, fomos nos soltando e conhecendo os colegas redatores e redatoras da área de conhecimentos Ciências Humanas Sociais e Aplicadas.

Constituímos um belo grupo de trabalho, com diferentes personalidades e habilidades. Nos complementamos para a nossa tarefa maior: escrever os fundamentos, a metodologia e os conteúdos e contextos para orientar a implementação do Novo Ensino Médio no RS. Está sendo maravilhoso crescer como grupo, liberar, aos poucos, nossos conceitos e ideologias e, divergir, com respeito e consideração aos outros. Afinal, cada um e cada uma dos redatores e redatoras já tem uma bela história de vida e de estudos, em busca de aperfeiçoamento pessoal e profissional.

Duas coisas me realizam nesta atividade de redator do Referencial Curricular do Novo Ensino Médio do RS: a possibilidade de incorporar os conhecimentos e os objetivos do Ensino Religioso para uma formação integral, também no Ensino Médio, e a construção coletiva de textos, onde fazemos autoria e construção de conhecimentos de forma compartilhada.  

Espero, sinceramente, que as nossas melhores intenções de escrita ajudem a promover uma educação de qualidade social no Novo Ensino Médio. E que inspirem as mudanças na educação, para favorecermos o protagonismo e os sonhos que os jovens desejam sonhar e concretizar neste nosso momento histórico.

Nei Alberto Pies pies.neialberto@gmail.com

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Que experiência maravilhosa vem sendo esta!

No ano de 2019, tive a grata surpresa de ser convidada para atuar como multiplicadora do Referencial Curricular Gaúcho (RCG) do Ensino Fundamental. Já havia tido contato nos anos anteriores com as consultas públicas, leituras, formações sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mas o fato de poder me aprofundar mais naquele ano no assunto, debatê-lo e, além disso, auxiliar na divulgação RCG do Ensino Fundamental junto aos demais colegas professores.

Foi uma experiência muito enriquecedora e gratificante, tanto que já naquele período busquei me informar como poderia ser mais atuante no RCG do Ensino Médio que eu saberia que viria. Não consegui as informações no momento, mas fiquei aguardando.

Até que em setembro passado (ano 2020), vi o edital sobre a seleção de redatores para o RCG do Ensino Médio. Me inscrevi, pois penso que se queremos mudanças, devemos agir, atuar para conquistá-las. Mas jamais pensei que seria selecionada. Afinal, o nosso estado é rico em professores com muita capacidade para tal. Para minha surpresa, fui selecionada pra entrevista. E para a surpresa final, fui selecionada como redatora da Geografia. Era muita responsabilidade.

Na primeira reunião com todos os redatores, de todos os componentes curriculares, uma apresentação em Power Point sobre todas as tarefas que teríamos que executar a cada dia. Fiquei em choque: era muita coisa. E desabafei na hora para meus colegas: estou apavorada! Poderia ter desistido, mas não é do meu feitio. Resolvi encarar.

NÃO PODIA TER FEITO ESCOLHA MELHOR! Que experiência maravilhosa vem sendo esta! Que pessoas e profissionais maravilhosos conheci! As reuniões (todas infelizmente por Meet), são excelentes! Anderson, do CONSED, que paciência infinita conosco!

Meus colegas da Área de Humanas então, o que dizer sobre eles? O que já disse uma vez em reunião: gostaria muito de ser aluna de vocês!

É puxado? É.

Temos que fazer muita coisa em espaços curtos de tempo? Sim.

Viramos noites trabalhando? Quantas.

Nos cobramos o tempo todo, com medo de estar fazendo algo errado? Sempre.

Estamos fazendo nosso melhor? Com certeza.

Estamos fazendo nosso melhor, nos doando (refletindo, debatendo, estudando, analisando,…) pelos nossos(as) alunos(as), pelos nossos(as) professores(as), pela nossa Educação no nosso estado. Quem ler esse depoimento, pode ter certeza, que a cada palavra que digitamos nos documentos, a cada reunião que fazemos, sempre vocês – estudantes e professores(as) – estão em primeiro lugar!

Cristina Schneider

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Compromisso com meu fazer pedagógico

Como Professor da rede estadual do Rio Grande do Sul há 26 anos, aceitei o desafio para pensar a educação básica e especificamente o ensino médio no horizonte do conhecimento para todos e todas, da ciência, da emancipação; assumi a urgência de debater nosso ensino e suas metodologias a partir das juventudes, de suas demandas e de seus contextos.

A vida, a existência dos indivíduos, a sociedade e a solidariedade, bem como a excelência intelectual e sentimental passam pelo protagonismo das/dos professoras/es, de cada indivíduo que vê a escola com desejo de saber.

Me senti comprometido e diretamente implicado em meu fazer pedagógico e com as juventudes, com os rumos e implicações da educação e, especificamente, do ensino e me envolvi nesse grande diálogo que pode salvar indivíduos e a sociedade. Mas que, para isso precisa estar consciente de que, conforme dados do PNAD (2015), somente 61% das juventudes brasileiras e 59% das juventudes gaúchas, concluem o EM; 12%, no Brasil, e 14%, no RS, deveriam estar cursando o EM e estão fora da escola; 24% das juventudes do EM, matriculadas no RS, trabalham durante o dia, enquanto 17% na média brasileira. Daquelas juventudes que não estão na escola, 44% estão trabalhando, no RS, e 33%, na média brasileira. Não bastasse isso, é preciso ainda compreender que 20,1% das juventudes do EM enfrenta a reprovação em escolas públicas, enquanto, apenas 5,1%, na rede privada (INEP, 2018). Mas é preciso pensar, também, que a rede pública acolhe 88% das juventudes das classes trabalhadoras, como explica a Professora Dra. Jaqueline Moll (https://fb.watch/2j1x5pHrJH/ )

As realidades nos fazem pensar, comprometem e impulsionam reflexões e ações. O compromisso ético-político e pedagógico com a educação e, especialmente, a escola básica da rede pública do Rio Grande do Sul, me move para contribuir nas instâncias disponíveis e desenvolver lutas para conquistar novos espaços de colaboração sem abandonar as convicções e o objetivo da qualificada escola pública que acolha a todas e todos com ensino satisfatório e realização pessoal.

Compreendo que o compromisso com a educação não elimina os tensionamentos; antes, tem condições de expor as divergências, as pluralidades e diversidades do debate, das compreensões e, nesse campo, promover o diálogo que faz crescer, aponta limitações, dificuldades, ingerências e, desse modo, visualiza possibilidades propositivas.

Outro problema histórico que tem afetado as construções democráticas no mundo da educação, é referente ao descaso com que professoras/es tratadas/os: mal compreendidas/os, incompreendidas/as, não recebem o reconhecimento merecido e, parecem, inclusive, não serem reconhecidos/as como agentes do Estado; não são incorporadas/os, envolvidas/as, nas processualidades que lhe são próprias. Desse modo uma categoria indispensável na construção social, sofre com a desprofissionalização pois é retirada do seu lugar. É tomada, em contrapartida, da desesperança e do desencantamento. Isso acontece sempre que a discussão educacional, pedagógica, do ensino, se processa distante dos quadros docentes e é delegada a alguns/algumas poucos/as especialistas, experts, como denuncia fartamente, Gaudêncio Frigotto.

A lógica do afastamento docente da centralidade dos debates que envolvem a educação afeta também a formação continuada e a democracia no pensar e decidir sobre os assuntos do ensino. A/O Professora/or perde protagonismo que, neste horizonte, é cidadania, emancipação. Ainda que paire uma concepção paternalista que delega, outorga, na sociedade, a educação precisa aprender novas lições e, o Ensino Médio, inclusive, de uma alfabetização com sentido dialógico, científico e relevante centralidade.

O EM não pode se contentar em ser uma etapa de transição, pois grande parte das juventudes, lamentavelmente, não seguem seus estudos. O grande aprendizado que escapa ao EM e, por isso, sua frequência à sala de recuperações, é se assumir como etapa importante, central, dos processos de ensino. Uma etapa em si, não quer dizer, isolada, mas interrelacionada, especialmente, com as demandas das juventudes para compreender e enfrentar o mundo do trabalho. Isso implica não submissão ao mercado do trabalho e às precarizações decorrentes dos projetos neoliberais. Então surgem as juventudes do Ensino Médio que são caladas pelas estruturas do sistema e imposituras burocráticas.

As vozes precisam ecoar, as demandas expressas, ouvidas e atendidas; as Professoras e os Professores, também. A comunidade, célula do Estado, precisa gritar e instituir canas efetivos, fóruns permanentes de diálogo. É preciso formar cidadãos e cidadãs para que a cidadania aconteça. E desse modo, assumir espaços, assumir a condição de profissionalização, de emancipação, pelos canais pedagógico, político, científico e afetivo.

Professoras e Professores se constituem nos processos, e processos são fronteiras de conhecimento, de autoconhecimento e de possibilidades. Constituir, então, implica consciência de si, do outro/a, do mundo, da contingência/ambivalência e da pluralidade. Me vejo nisso enquanto redator do RCG: uma espécie de Professor que precisa aprender junto com o EM, precisa recuperar junto; mas uma recuperação que opere pedagogicamente para salvar o EM, a escola pública e a educação”.

Autor: Claudionei Vicente Cassol, cassol.cv@gmail.com

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A redação do Referencial Curricular Gaúcho como experiência micropolítica de construção coletiva

Acredito que a redação coletiva para a elaboração do Referencial Curricular Gaúcho para o Novo Ensino Médio, principalmente junto ao grupo selecionado para a Área de Conhecimento das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (CHSA), proporcionou outros modos de escrever e de pensar, possibilitou reinvenções e reorientações, indicando outros caminhos para sentir e atuar sobre si, os outros e o mundo.

Uma experiência de reflexão, como um aprendizado de olhar-se no espelho do Eu. Colocar-se na perspectiva de um professor-escritor colaborativo, integrar um grupo cuja construção deve ser conjunta, permitiu percorrer esses locais maleáveis da vida, aventurar-se na fronteira entre a familiaridade das próprias ideias e a experiência do estranhamento.

Nessas poucas linhas, a partir de uma narrativa em primeira pessoa, relato inicialmente como a produção da escrita e do pensamento realizados de forma conjunta possibilitaram experiências individuais. Posteriormente, a segunda experiência destacada descreve minhas impressões a respeito do caráter coletivo do processo de redação. Para tanto, o texto se posiciona a partir de uma perspectiva micropolítica, buscando desterritorializar a discussão a fim de adotar ações plurais e pensar de forma militante o campo da Educação.

A ideia de “experiência” é utilizada aqui a partir de autores como Jorge Larrosa (2002) e sua concepção de experiência como tudo aquilo que atinge nossos sentidos; de John Dewey (1971), para quem a experiência é vital e singular; e, ainda, Donald Winnicott (1972) e sua definição de “experiência cultural” como um espaço potencial, espaço de transição que se abre entre o “Eu” e o “Outro”. Pensadores ligados ao campo da educação que permitem aumentar nossa percepção à determinados acontecimentos que são marcados por atravessamentos, mudanças e afetos, provocando deslocamentos de nós mesmos. Acontecimentos que nos jogam fora do espaço e do tempo comum em que estamos habituados, instigando outras formas de pensar e agir com os outros e com o mundo. Na experiência da alteridade, da discussão coletiva e do diálogo construído conjuntamente, residem as alternativas para outros formatos de Educação.

A primeira experiência foi aquela vivida de forma individual, mas não individualizante, pois se esta remete ao formato do escritor solitário, sem comunicação coletiva, a primeira é marcada pela condição dos contatos, da integração entre os indivíduos de um mesmo grupo.

No início do processo, porém, percebi minha hesitação em rascunhar palavras e frases em frente aos colegas participantes. A condição de trabalhar conjuntamente em um documento digital foi um tanto desafiadora. O termo ato da escrita que compreende a composição do espaço literário, esplendidamente descrito por Maurice Blanchot (2011), reconfigurava outros ambientes para a criação coletiva. A possibilidade de outros formatos para pensar e escrever foi uma das primeiras experiências de estranhamento durante o processo de redação. Ao mesmo tempo em que se perdia o domínio do próprio texto individual, construíam-se vigorosas ideias, fruições compartilhadas em um espaço e tempo imaginativo a partir das conjunções elaboradas pelo grupo de redatores.

O debate durante as reuniões, realizado para a aceitação e/ou rejeição de propostas escritas e de ideias expostas, causou-me desconfortos, já que é possível assumir como pessoais as críticas e sugestões gerais dentro de um processo de construção colaborativa.

O exercício de aceitação, de consentimento, jogou-me em reflexões constantes ao final das reuniões. Os territórios da elaboração conjunta nem sempre são sólidos, e, do mesmo modo que possibilitam forjar outras subjetividades, provocam colisões em nossa constituição de si. É como manter-se em equilíbrio, movimentando-se continuamente durante uma prática de malabarismo. Embora os termos “malabarismo” e “equilíbrio” encontrem alguma sinonímia, enquanto o primeiro busca sensações, o segundo parece procurar sensatez.

A segunda experiência transitou da reflexão individual para o que se tornava cada vez mais significativo durante o processo de redação, pois esteve sempre alinhavada com pensamentos e desejos comuns. Aqui é preciso considerar que o exercício de construção coletiva desenvolvido pelo grupo da CHSA assumiu cada vez mais seu caráter político e ético em se tratando de Educação.

É evidente que as crises e os problemas que assolam a educação brasileira adquirem nuances regionais no estado do Rio Grande do Sul. São diferentes realidades, distintas regiões, suas territorialidades são múltiplas. A análise dos diagnósticos por regiões do RS possibilitou, ainda que de forma parcial, o conhecimento das distintas realidades e pluralidades em seus aspectos econômicos, sociais e culturais.

Movimentar-se no campo da educação a partir da elaboração de um currículo organizado de forma plural, autônoma e flexível é uma tarefa política constante para toda a comunidade atuante nas redes e unidades escolares, possibilitando contornar e problematizar de forma singular, os diferentes aspectos dessa crise.  

Tendo em vista essas questões, ouso afirmar que através das ações, dos exercícios coletivos e colaborativos, adentramos, como grupo de redatores, o âmbito da micropolítica. Adotar uma perspectiva micropolítica converge à produção de multiplicidades de ideias, de pensamentos, de objetivos, de afetos em comum. A micropolítica se distribui e opera de outro modo, não é segmentarizada espacial e socialmente, seja por meio de classes, instituições ou demais organizações sociais; não é centralizada ou unificada como os sistemas políticos modernos; e, nem mesmo é mobilizada a partir de oposições binárias como homem-mulher, como “os de cima e os de baixo”, etc. (DELEUZE & GUATTARI, 2012). Do ponto de vista da micropolítica, salientam os autores (2012), “uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que sempre são moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação[…]” (p. 103).

Atuar em níveis micropolíticos consiste em direcionarmos nossas forças não somente às “massas” ou ao combate do Estado e seus totalitarismos como em uma perspectiva macropolítica tradicional, mas, sim, atingir pluralidades, reconhecer diversidades. Investir em lutas diárias contra todos os tipos de fascismos, racismos, preconceitos, pois seu poder se encontra também no cotidiano, infiltra-se dentro de nós, subjetivando-nos.  As forças micropolíticas são aquelas que escapam entre as fendas do sistema, não em busca de decifrar os códigos que instituem poderes, saberes ou regras, mas sim para criar outros fluxos de vida, outras formas de existência cotidiana para o político. Essas pequenas revoluções, como escreve Félix Guattari (1985), pulsam e impulsionam as políticas de nossos desejos. Enxergar professores e professoras, alunos e alunos e as escolas como máquinas de desejo, potências micropolíticas de mudança, pois, como aponta o mesmo autor (1985), o desejo não é somente do indivíduo, mas de todo um campo social, visando subverter as ordens de poder dominantes.

A perspectiva micropolítica da construção coletiva permite reorientar nossos desejos para uma “educação menor”, como destaca Sílvio Gallo (2002). Uma educação menor possui múltiplas entradas, realiza-se pelos contatos cotidianos em sala de aula e nos demais espaços escolares, foge dos binarismos, experimenta outras linhas de fuga e aposta na possibilidade da diferença, permitindo-nos sermos revolucionários. Uma educação que utilize o desejo como produção da nossa potência. Uma educação que nos constitua como professores-militantes em territórios matizados pela diversidade étnica, social, cultural e econômica, pois como destaca Gallo (2002), a chave da ação militante do professor é “[…]sempre uma construção coletiva”, “[…]nunca é uma ação isolada” (p. 171).

Por fim, resta dizer que a prática do exercício da escrita conjunta possibilitou, além de vivenciar estranhamentos, entender e assumir a construção coletiva durante a redação do Referencial Curricular Gaúcho para o Novo Ensino Médio como uma experiência micropolítica. Ainda que a elaboração de um documento que oficializa a base referencial curricular para o estado do RS possa soar e ser visto como uma forma legalizada da intervenção do poder estatal, a experiência da redação colaborativa promoveu ações significativas pelas quais a educação deixa de ser um conceito abstrato, transformando-se em prática, cada vez mais constituída cotidianamente por meio de aspectos éticos, estéticos e políticos.

Autor: Eloenes Silva, eloenessilva@gmail.com




Referências

BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. São Paulo : Editora Rocco, 2011

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 3. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34 ,2012 (2ª edição). 144 p. (Coleção TRANS)

DEWEY, John. Experiencia y educacion. Buenos Aires: Editorial Losada. S. A., 1971.

GALLO, Sílvio. Em Torno de Uma Educação Menor. Educação & Realidade. Porto Alegre, 27 (2), p. 169 -178, ju./dez. 2002.

GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo. Seleção, prefácio e tradução: Suely Belinha Rolnik. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, 2ª edição. 

LARROSA – BONDIA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, Campinas, n. 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr., 2002.

WINNICOTT, Donald Woods. Realidad y Juego. Tradução de Floreal Mazia. 1. ed. Buenos Aires: Granica, 1972. 199 p. (Coleção Psicoteca Mayor).

Publicação atualizada e revisada em 05/02/2021

1 COMENTÁRIO

  1. POR ENQUANTO CONVERSAS E RELATOS VAMOS VER O DESENROLAR – O TRABALHO EM SI FRENTE AS NECESSIDADES, QUE SÃO MUITAS – ALUNOS, PROFESSORES, COMUNIDADES… TEMOS QUE OLHAR O PRESENTE NÃO DEIXANDO MORRER O PASSADO QUE NOS TROUXE ATÉ AQUI. ME REFIRO A HISTÓRIA DOS POVOS – NÃO PODEMOS ESQUECER… GOVERNOS E ACONTECIMENTOS IMPORTANTES – NÃO DESPREZANDO ECONOMIA, POLÍTICA, FORMAS DE GOVERNOS – TUDO PARA ANÁLISE. A POLÍTICA ACOMPANHA TODOS OS MOMENTOS E TODAS AS ÁREAS. ME REFIRO A POLÍTICA SERIA – SEM LADOS, NÃO ESSA EM QUE O PAÍS SE TRANSFORMOU E QUE É USADA PARA TIRAR PROVEITOS DE AMBOS OS LADOS! EDUCAÇÃO É REFLEXÃO E NÃO A RECEITA QUE ACHO FAZER BEM A SAÚDE OU A POLUIÇÃO DA MENTE, O NÃO PENSAR POR SI SÓ!… MOSTRA – SE COMO É; O ALUNO QUE PESE E FORMULE O SEU CONHECIMENTO!… ESPERAMOS!

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