Devir-árvore e os mundos das crianças

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Os mundos das crianças acompanham o devir-árvore quando elas não estão preocupadas em dinheiro, em negócios, mas em brincadeiras que as divirtam, em serem respeitadas e amadas pelos seus familiares e amigos.

Em Nietzsche, mais precisamente na obra “Assim falou Zaratustra”, podemos ler o seguinte “Volta a semelhar-te à árvore que amas, a de amplos galhos: atenta e silenciosa pende ela sobre o mar”.

Que nós possamos estar próximos em existência e realidade da árvore com a qual somos parecidos ou nos identificamos porque todo ser virtuoso e preocupado com o meio ambiente tem uma árvore com a qual se identifica e se assemelha procurando nela um pouco de si, um pouco de resposta as suas indagações que criam calos no pensar.

O filósofo Heráclito de Éfeso no seu pensamento sobre a origem das coisas nos deixou o devir. Para ele, todas as coisas se constituem por contrastes e contradições: entre completo e incompleto, harmonia e desarmonia, afirmação e negação, ordem e desordem. O resultado da relação entre os contrastes resulta na mais bela harmonia. Este devir seria uma espécie de mudanças pelas quais todos nós passamos o tempo inteiro.

As árvores, junto conosco, também passam por esse movimento, essa harmonia e desarmonia, essa ordem e desordem, seja enquanto semente e, em seguida, tronco com galhos, seja apenas no fato de existir e estar ali na floresta junto com todas as outras árvores. Todas em movimentos, não pelo vento, mas pelo devir, por essa espécie de transformação necessária a existência das coisas, o que dá motivo as coisas existirem e que as levam sempre a uma nova realidade.

O ser é um constante vir-a-ser, estamos sempre nos tornando a todo momento uma versão renovada de nós mesmos. A vida acontece neste fluxo, impulsionada pelas forças contrárias. Assim são as árvores. Elas não estão paradas. Necessitam desse movimento transformador que as tornam melhores a cada dia, por isso sua copa e galhos parecem sempre alegres e diferentes do minuto anterior que olhamos para elas.

Devir-árvore nos prepara para uma transformação da natureza que acontece a todo instante, dando grandiosidade e beleza as árvores dentro do que se concerne na existência, na sua realidade, na sua propriedade de coisa que está no mundo sendo uma potência gradual do instante necessário aquilo que aparece na consciência do Daimon enquanto ser de alguma experiência terrena.

Devir-árvore permite que as partículas do universo que o constitui entrem em nossos espíritos e nos transformem para no instante seguinte sermos mais um ente a existir no cosmos, de uma forma renovada.

É preciso que o devir-árvore entre em nós para quebrar a nossa casca e devir alguma coisa.

Estamos acomodados com as nossas vidinhas passageiras, com a rotina do dia a dia de caminharmos entre as árvores sem darmos conta das suas transformações e mudanças que enfrentam junto conosco. Esse devir-árvore explode como uma semente que brota no espírito da realidade e o traduz em um novo espírito que tangencia a questão não de si, mas de todas as coisas que constituem a realidade e somam-se a sua totalidade.

Enquanto nos afundamos nos nossos problemas, perturbações, paramos no meio do caminho ao encontrarmos pedras ou buracos, ficamos ansiosos e aflitos com novas batalhas as árvores continuam a deixarem as suas raízes fazerem parte da nossa existência.

Buscamos sempre a superioridade, queremos ser os donos do mundo, inventamos máquinas todos os dias, alteramos o clima e queimamos as florestas, construímos pontes e muros, nos afastamos uns dos outros e enquanto isso as árvores estendem as suas copas para além das florestas sem se preocuparem com tesouros e negócios nas bolsas de valores.

Devir-árvore é esse movimento dentro da gente que faz com que pensemos na nossa existência e nas coisas necessárias para um viver com intensidade, com benquerer, com amor ao próximo e cuidados ao universo que já não praticamos mais. Os galhos das árvores atravessam os nossos órgãos, viajando do fígado aos pulmões, do coração ao estômago e assim por diante, deixando transformações essenciais ao viver que abandona a unidade e se conserva na multiplicidade da existência do ser sempre mais um.

Baseados no devir-árvore podemos pensar o mundo das crianças que também se transforma junto com tudo o que existe no mundo e no momento em que elas fazem perguntas e descobrem algo novo para guardarem dentro de seus grandiosos pensamentos.

As crianças estão sempre se renovando e permitem muito mais que os homens serem preenchidas pelas raízes das árvores com as suas inquietações e dúvidas que nunca param de brotar dentro de seus pensamentos assim como sementes de árvores que estão sempre a cair pelo chão, as perguntas das crianças estão sempre nas mãos de um adulto.

Os mundos das crianças acompanham o devir-árvore quando elas não estão preocupadas em dinheiro, em negócios, mas em brincadeiras que as divirtam, em serem respeitadas e amadas pelos seus familiares e amigos.

Nasce sempre uma esperança dentro de uma criança quando ela é tocada por um adulto despojado de toda inveja e egoísmo.

Ela conhece os homens bons igual as árvores. A criança preenche-se de frutos doces e gostosos para adormecer e sonhar com mundos muito melhores do que o nosso.

Nos mundos das crianças elas não precisam se vestirem de elogios, promoções ou cargos elas são apenas crianças e querem ser respeitadas como tal, igualmente são as árvores que permanecem nuas sentindo o vento no corpo.

Um menino pode brincar no quintal de casa completamente nu sem se preocupar com a sua nudez, pois a inocência que constitui a sua existência não necessita de pudores que nós adultos adquirimos e instituímos nas nossas sociedades.

As crianças também não precisam de aparelhos celulares. Quem inventou isso para elas? Elas precisam de brinquedos criados pelas suas próprias mãos. Elas precisam brincar pelas ruas, parques, quadras esportivas. Sentirem o vento no rosto, correrem, pularem e experimentarem a vida de todas as formas, seja caindo, se arranhando, chorando e correndo de novo.

A criança vive num processo de constante vir-a-ser. Ela nunca para. Ela quer conhecer o mundo que habita enquanto constrói os seus mais diversos mundos. É preciso respeitar esse momento de descoberta da criança, esse momento mágico onde tudo é novo e pode ser transformado mil vezes assim a criança deseje.

Não deve haver trocas de mensagens eletrônicas entre as crianças, mas o contato presencial, também não precisam saber das novidades das redes sociais e das mídias, as crianças só precisam brincar. Assim acontece com as árvores que endurecem seus caules para enfrentarem as tempestades e os ventos. As crianças também têm as suas defesas. Elas aprendem desde cedo a amarem as pessoas ao seu redor e choram com os desconhecidos. O choro é uma forma de proteção que a criança encontra.

Nem toda criança é birrenta e explosiva, quem disse que o devir é assim? O devir é calmo, ele acontece na paciência, na resiliência, no silêncio e tranquilidade. A potência não deseja ser reconhecida, ela quer ser amada e viver dentro de cada um de nós de uma forma que possa nos fazer crescermos e tornarmos a realidade não do jeito que nos é apresentada pelos adultos, mas do jeito que nós conseguimos compreendê-la.

Os pais e professores devem compreender o devir-árvore para compreenderem o devir-criança. Esse vir-a-ser que nos modifica faz de nós pessoas diferentes o tempo todo. As crianças nunca estão paradas ou quietinhas como costumamos dizer. Dentro delas mundos acontecem, personagens surgem, amiguinhos imaginários habitam e brincam com elas. Assim é o devir-árvore que faz da seiva a sua nutrição para continuar crescendo e nos dando sombra e frutos assim como se enraizando nas profundezas dos nossos seres e compartilhando conosco os seus mais íntimos segredos.

Quando pais e professores começarem a se preocupar que as crianças iguais ao devir-árvore estão sempre em constantes transformações certamente compreenderão o corre-corre dentro de casa, os brinquedos espalhados pela sala, a parede riscada de giz de cera e, principalmente, as muitas questões feitas a todo instante. As crianças só querem um pouco de atenção, um galho onde possam se pendurar quando o medo surgir dentro delas.

Uma semente possui mais memórias do que os nossos computadores e com isso ela sabe discernir entre o bem e o mal. Ela sabe o que quer mesmo não tendo consciência disso. Ela permite secularizar-se para através das gerações contar as suas lembranças através das suas sombras e folhas secas caídas ao chão.

Devir-árvore não vive o tempo da gente, não se preocupa com a morte. Ele é eterno. Mesmo que seja queimado ou derrubado com a força de um machado, ainda assim a semente dará continuidade a uma nova espécie sendo este seu ciclo existencial: a eternidade da memória da semente.

As crianças também costumam guardar lembranças. Elas sabem diferenciar quem é bom ou não para com elas. Muitas vezes conseguem lembrar com detalhes o que lhes fizeram de ruim que ficou marcado nos seus pensamentos. Toda criança é como uma semente, ou seja, é eterna mesmo depois de tornar-se adulta ainda assim continuará a indagar-se como tal por dentro até que a morte desfaça a sua existência.

Uma criança sabe o que quer, o que é melhor para si, o que pode lhe trazer alegrias. Assim são as árvores. Elas também sabem o que desejam, se conhecem profundamente e têm seu objetivo: prolongar a suas raízes para abraçar com todo o seu amor a terra. Essa mãe-terra que a fecundou e que agora precisa do seu grandioso e imenso amor.

Para finalizar, deixo vocês com os versos do poema de Manoel de Barros intitulado “Árvore” que diz “Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore. / Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho. / No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de sol, de céu e de lua mais do que na escola.”

Assista ao vídeo: https://youtu.be/N-NgJ8X7Wn4?t=32

Que cada criança torne-se árvore de sua própria existência e aprenda que a grandiosidade do viver estar no brincar e ser amado. Quando se fica de birra não é mimo, mas um jeito que o devir-criança encontrou para transformar a sua emoção.

Autora: Rosângela Trajano

Edição: Alex Rosset

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