Desequilíbrio planetário: superando crises e vulnerabilidades

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A questão é simples de entender: planeta saudável e vida social equilibrada requer, fundamentalmente, a reestruturação dos atuais padrões de consumo e produção, hoje vistas como “forças” pró-desequilíbrio ambiental que respondem, sobretudo, pelos efeitos ecodestrutivos.

O que quer que se pense sobre a espécie humana, ao menos uma coisa é certa: até aqui, não temos nos comportado muito bem no relacionamento com a natureza. Nossas ações e o jeito como habitamos o mundo nos denunciam. Em nenhum outro momento da história humana a biodiversidade esteve tão comprometida como agora.

Nunca os ecossistemas foram tão devastados como estão sendo nesse momento. Com efeito, nos tornamos uma força geológica com efeitos deletérios. Pela primeira vez, estamos nos limites da biosfera, e sabemos agora, diante de tantas evidências, que estamos ajudando a produzir a mais avassaladora e inconsequente destruição de recursos do mundo natural.

Ameaças à natureza, modificando a atmosfera, os solos e o mundo das águas, aliado à pressão exercida pela ação humana sobre a biosfera, capaz de alterar radicalmente os ciclos naturais, deixam claro que o estilo de vida do mundo moderno (a razão ocidental) é incompatível com o processo de regeneração do meio ambiente.

A bem da verdade, é difícil não se surpreender com o estado em que estamos deixando o mundo. Animais, plantas e minerais estão a um só fio. Das 9 milhões de espécies (as estimativas são: 6,5 milhões de espécies terrestres e 2,5 milhões de espécies marinhas) de animais e plantas que habitam o planeta, simplesmente 1 milhão estão sob risco de extinção.

Mas não é só isso. Nos últimos setenta anos, as atividades humanas emitiram três quartos de todo o dióxido de carbono estocado na atmosfera. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), temos hoje em dia cinco vezes mais desastres meteorológicos do que em 1970, e eles provocam custos sete vezes maiores do que naquela época.

Na boa descrição dos fatos, resulta que a perda de biodiversidade, o aquecimento global, o desmatamento, a erosão do solo, o derretimento de geleiras, a acidificação dos oceanos, a degradação de biomas, a poluição das águas, do ar e do solo são, decerto, exemplos clarividentes de como nossas insustentáveis ações, influência humana, para usar outro termo mais refinado, produzem o que se convenciona chamar de desequilíbrio planetário.

Ocorre que, em todo esse contexto, há, de fato, o sentimento de que os desequilíbrios ecológico-ambiental traduzem o abalo às macroestruturas da Terra. Na dúvida, recorramos aos cientistas da Terra que não cansam de nos avisar que, dos 31 “sinais vitais” da saúde do planeta (entre eles, o desmatamento, a saúde dos solos, o derretimento de geleiras, a emissão de gases de efeito estufa), ao menos 18 deles já estão seriamente comprometidos.1

Essa confissão, é lícito dizer abertamente, não consegue esconder as mais sérias consequências que recaem sobre o sistema vida, muitas delas previsíveis. E sem que nos acuse de fazer discurso apocalíptico, o que está vindo em nossa direção é bastante preocupante.

Ainda hoje, em todos os lugares do planeta, a poluição do ar mata mais de 7 milhões de pessoas todos os anos. São inaceitáveis 15 mil mortes por dia. A poluição da água, não menos grave, mata, durante os doze meses do ano, mais de 4 milhões de crianças em todo o mundo. No geral, para dizer de outra forma, as chamadas doenças ambientais estão cada vez mais próximas de nós. Recordemos: num amplo relatório divulgado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) no já distante ano de 2012, fomos informados que uma em cada quatro mortes naquele ano foi causada por questões relacionadas ao meio ambiente. No total, foram 12,6 milhões de mortes.

Em síntese, é por essa razão que a Terra – que regula e mantém as condições de vida – grita alto. Nessa mesma direção, o drama ecológico daí decorrente, do qual já não mais temos controle, fala por si. Sob essa perspectiva, tem sido fácil perceber o caminho do desastre ecológico, agora arrolado na influente ideia do Antropoceno2, quer dizer, a Época do Homem, visto e entendido como vetor de considerável mudança nos ecossistemas globais.

Ainda assim, em linhas gerais, precisamos admitir: com esforço comum e muita vontade política, é possível mudar radicalmente o atual sistema de produção que depreda o planeta. Assim como também é possível alterar o modelo civilizatório, reorganizar a vida de outra maneira, vencer a dívida ecológica, eliminar a diferença e a desigualdade social e avançar com o desenvolvimento humano para todos.

Redobremos a atenção para o que mais importa: se, de fato, quisermos continuar contando a nossa história de vida, já é mais do que tempo de evoluirmos em termos de conscientização ambiental, uma das lacunas mais gritantes que ainda precisamos preencher.

Nesses tempos de urgência, em que os interesses econômicos são colocados acima da questão ambiental, precisamos compreender bem que a qualidade da vida humana (o desejo legítimo que todos anseiam), diretamente associada à preservação da riqueza do mundo natural, está seriamente comprometida. E isso quer dizer exatamente que, entre a busca por um mundo moderno (apoiando-se no desenvolvimento tecnocientífico) e os limites da Terra (nem sempre levados a sério pelos atores sociais), as condições ambientais, das quais depende nossa sobrevivência, estão sendo completamente exauridas. É esse o cenário que precisamos urgentemente desmontar.

Do ponto de vista ambiental, os números conhecidos não deixam dúvidas: trinta por cento das terras aráveis do mundo já se tornaram improdutivas, e nada menos que 63% dos 89 recursos não renováveis que possibilita a existência da sociedade industrial de alta tecnologia, assim comenta Sylvia Lorek3,já tinham se tornado globalmente escassos em 2008. Os ecossistemas globais (ambiente marinho, florestas tropicais, florestas temperadas e etc) continuam sendo degradados com abusiva e comprometedora velocidade.

A vida selvagem já entrou numa espiral de aniquilação, afinal, em apenas 50 anos aniquilamos dois terços dela. Eventos extremos, secas, ondas de calor e surtos de tempestades, como é fácil supor, assustam-nos devido a frequência em que se sucedem. Os territórios continuam sendo devastados e os recursos naturais, outra constatação fácil de ser feita, se aproximam do esgotamento.

Dura realidade, à medida que apelamos ao planeta para suportar a industrialização a qualquer preço, esquecemo-nos de prestar atenção ao fato de que a demanda por bens de consumo pressiona as reservas de recursos da natureza, isto é, o uso global de água doce, a exploração dos oceanos, o uso do solo e assim por diante.

Nessas condições, imaginar que podemos continuar com a expansão do aparato produtivo, sem que se busque ampliar a eficiência energética (fazer mais com menos), ou mesmo sem que se questione a fundo a influente ideia de modernidade, hoje amparada na expectativa do crescimento acelerado e sem fim, é ignorar por completo que, a essa altura, temos sido incapazes de manter o consumo de recursos dentro da biocapacidade do planeta, tanto quanto temos sido incompetentes no que mais importa: a elaboração de um amplo programa de desenvolvimento sustentável.

Definitivamente, e por sorte, desenvolvimento que se preze – outra legítima aspiração humana – deve estar centrado no ser humano e na preocupação ambiental. E apesar do entusiasmo que isso suscita, não podemos nos iludir: exige-se esforço comum de todos os atores sociais para inverter radicalmente a realidade dos dias de hoje, colocando a economia (que é apenas um meio, vale frisar) para servir as pessoas, e não o contrário. Logo, é válido assim imaginar que isso nos ajudará a superar a visão parcial de mundo sustentável que ainda insistimos em manter.

Seja como for, antes de mais nada, há nesse contexto um específico problema de base a ser superado. Apesar de fazer mais de meio século que a comunidade científica dispara alertas de que a civilização moderna se encontra em apuros, ainda hoje tratamos a questão climática (certamente a situação mais grave desse nosso jovem tempo) com posições moderadas.

Em termos de trama ecológica, parece mesmo que ainda temos dificuldade de entender que a crise ecológica contemporânea, sob a benção do Antropoceno, é altamente insustentável. Sequer percebemos com clareza que os principais problemas ambientais são gestados (e mantidos) pela lógica da acumulação capitalista. Por isso tudo, com base nesses princípios, é urgente a conscientização para a tomada de radicais decisões.

Ou paramos de queimar combustíveis fósseis ou o futuro reservado para cada um de nós, estejamos no Sul ou no Norte globais, será incerto e ainda muito mais ameaçador. Ou aprendemos a valorizar a ideia de conservar toda a natureza, ou nem futuro teremos. Ou alcançamos as metas estabelecidas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), redução de 45% das emissões globais até 2030 e emissões zero (netzero) até 2050, ou teremos tempos desagradáveis ambientalmente falando.

Para insistir no assunto que sabemos ser urgente, ou exigimos dos principais governos do mundo a adoção definitiva de uma agenda do desenvolvimento sustentável (o principal tema deste século 21), ou cada vez mais, a partir do nosso modo de viver e com a nossa economia global, afetaremos a resiliência do Sistema Terra (isto é, a capacidade de responder às mudanças e às perturbações).

Por fim, ou entendemos definitivamente que somos natureza, ou nada feito. Ou nos sentimos como elementos do mundo natural, ligados a todo o resto, ou não terá sentido a reconstrução social da realidade, tampouco os princípios que organizam a vida moderna.

Como diz Aílton Krenak, fechando o raciocínio, “ou aprendemos a falar a língua da terra ou vamos ser expulsos do corpo da Terra como uma coisa estranha a esse organismo que produz vida”.4

Para agora enfatizar o discurso ecológico, o desafio da sustentabilidade ambiental se torna cada vez maior à medida que fica bem claro que entramos de vez numa rota de colisão. Na linha de frente, enquanto não pensarmos com seriedade no processo de regeneração do meio ambiente, mudando a lógica da ordem econômica (hoje vestida de imperativo de prosperidade que sustenta o estilo de vida do mundo moderno e que se sustenta na destruição ecológica), não teremos sucesso na busca de um mundo sustentável.

Em última instância, isso quer dizer que precisamos levantar esforços para construir um novo acordo global a fim de seguir a trajetória do equilíbrio planetário.

Mas isso, atentemos, não se restringe apenas a mudança climática, em que pese ser um desafio multidisciplinar e a maior ameaça à humanidade. Numa premissa bem mais radical, enquanto nova sociedade organizada, equilibrada e decidida a buscar um lugar comum, devemos procurar estabelecer uma boa forma de regular a ação humana sobre os recursos naturais da Terra.

Aqui, para além do que é razoável imaginar, precisamos fazer diferente quase tudo o que fizemos até agora. A começar pela busca de outra ideia de desenvolvimento que necessariamente vincule três ações coordenadas visando: (i) transformar a lógica da racionalidade econômica, a partir de um profundo questionamento do atual paradigma da modernidade; (ii) constituir outra economia que valorize maisa qualidade que a quantidade, admitindo que a Terra não pode suportar o atual modelo de civilização dominante; (iii) reconstruir a partir de um éthos de convivialidade o metabolismo Ser Humano-Natureza, conciliando os dois ecos/oikos (termo com a mesma raiz etimológica), o da Economia (ciência social) e o da Ecologia (ciência natural), disciplinas unidas sob o mesmo nível linguístico.

Fugindo do superficial, precisamos entender que isso tudo não será fácil. Há interesses econômicos a serem enfrentados. Embora dificultoso, mudar radicalmente um sistema econômico injusto baseado na exploração de combustíveis fósseis que vem ajudando a destruir a vida no planeta é possível e alcançável, com ou sem saída tecnológica.

Em retrospecto, cônscios da nossa responsabilidade para com o planeta, se quisermos ver mais longe devemos mudar os rumos insustentáveis da sociedade de hoje para assegurar um compromisso de qualidade de vida às gerações futuras. Junto às soluções técnicas e a necessidade de estimular as ecologias dos saberes, necessariamente respeitando as diversidades e aprendendo a valorizar a natureza, parece lícito acreditar que chegou a hora de mudar nosso comportamento e de mudar a direção de nossa economia global.

Tudo isso porque, a rigor, a questão é simples de entender: planeta saudável e vida social equilibrada (valores pelos quais a sociedade humana moderna deve se orientar) requer fundamentalmente a reestruturação dos atuais padrões de consumo e produção, hoje vistas como “forças” pró-desequilíbrio ambiental que respondem, sobretudo, pelos efeitos ecodestrutivos.

Num mundo tão conectado de hoje, diante de uma crise ambiental planetária na qual todos “nos encontramos a descoberto”, como enfatiza Bruno Latour, talvez seja essa a mais elementar mensagem de nosso conturbado tempo.

Notas:

1. Para efeito de esclarecimento, não faz muito tempo que os cientistas assim alertaram: “18 dos 31 ´sinais vitais´ do planeta, incluindo as emissões de gás com efeito estufa, a espessura das geleiras (o derretimento destas, vale a pena lembrar, tem sido 31% mais rápido do que há 15 anos, grifo meu, MEO) e o desmatamento, já alcançaram níveis recordes preocupantes”. (Cf. publicado em BioScience, jun. 2021).

2. Na sugestão de Paul Crutzen, o Antropoceno se inicia por volta de 1800, a partir dos passos iniciais da Revolução Industrial na Europa.

3. Cf.LOREK, Sylvia. “Desmaterialização”, (Verbete 17), in Decrescimento – vocabulário para um novo mundo. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2016, p.124.

4. Cf. KRENAK, Aílton. Habitar o Antropoceno. (Org.) Moulin et alii. BDMG Cultural / Cosmópolis, 2022, p.220.

Autor: Marcus Eduardo de Oliveira

Autor de Economia Destrutiva (CRV, 2017) e Civilização em desajuste com os limites planetários (CRV,2018), entre outros.  prof.marcuseduardo@bol.com.br 

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