Democracia à brasileira (uma reflexão sobre as diferenças) Parte I

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Se olharmos mais atentamente para nossa história, veremos que a própria composição do povo brasileiro moldou-se nessa direção, calcada, sobretudo, no não reconhecimento das diferenças, embora essas diferenças até sejam evidenciadas quando se quer menosprezar alguém!

Como o título anuncia, divido esse texto em duas partes. Segue a primeira.

Há, ainda, muitos problemas quanto a uma possível “democracia à brasileira” – aqui já adianto que não vou me ater a conceitos – que parecem inviabilizar a superação da desigualdade social e o enfrentamento da injustiça estrutural que compromete uma grande parte da vida de nossa gente. E nem preciso me afastar muito de meu cotidiano para constatar o que afirmo: minha ação na Pastoral Carcerária me mostra a todo momento esse fato.

Gostaria, porém, de me reportar a um desses problemas mais especificamente, pois que, a meu ver, ele engloba muitos outros: trata-se da desigualdade de oportunidades! Sem ela, os maiores esforços envidados pela possível boa vontade de muitas e muitos (na política partidária ou não) correm o risco de cair no vazio. Mas o que significa mesmo isso – desigualdade de oportunidades?

Se olharmos mais atentamente para nossa história, veremos que a própria composição do povo brasileiro moldou-se nessa direção, calcada, sobretudo, no não reconhecimento das diferenças, embora essas diferenças até sejam evidenciadas quando se quer menosprezar alguém!

É então que surge a ideia, equivocada, de que nós vivemos, no Brasil, uma “unidade nacional”. Mesmo idioma (“quem não sabe falar é burro”!), mesmo tipo humano (“brasileiro é tudo igual, sempre querendo levar vantagem em tudo”!), mesma história (“do Oiapoque ao Chuí, eita brasilzão”!), mesmo modelito curricular para as escolas, expedido na capital federal para todo o país (“criança é criança, igual em qualquer parte”!) etc.

Esta presumida unidade nacional se tornou igualmente constitutiva de uma imposição cultural, já que se pauta pelo preconceito, por um moralismo falseado, por um cristianismo deformado e excludente, por um absurdo dizer seletivo que, ao absolutizar o que se deve ser, fazer, dizer, acreditar, descarta tudo e todas e todos que não se enquandram nos seus modelos. De arrasto, “todos são iguais perante a lei” (Constituição Brasileira…) e então, está arquitetada oficialmente a “democracia, com igualdade de direitos e deveres” para todas e todos nós…

Mas, é mesmo assim?!

Vejamos um exemplo: sobre a questão do “idioma nacional”. A Linguística (Ciência da Linguagem) se ocupa também de ajudar a demolir as muralhas do preconceito linguístico instaurado a partir da pretensa unidade linguística nacional (falamos todos um único idioma – Língua Portuguesa!). Tal empreendimento, se constante dos programas de ensino, nas escolas, redundaria numa “democracia linguística nacional”, já que se buscaria diminuir a resistência em tratar os postulados daquela ciência na prática do cotidiano, reconhecendo os dialetos, as variações regionais, não como “língua errada”, passível de ser “corrigida”, mas como um jeito diferente de falar, como constituinte da língua viva!

E o mais interessante é o que já se conseguiu apurar a partir da Linguística: o preconceito não é contra “a fala” da pessoa, mas contra ela mesma, enquanto falante! Destarte, infelizmente, vemos que uma “democratização linguística” está longe de se consolidar, e nós sabemos por quê: os lugares sociais estão também determinados (e muito!) pelo modo de falar! Essa, me parece, é uma das facetas da “democracia à brasileira” que traz enrustidos os ranços perigosos do “eu sei, tu não sabe, vim te ensinar”.

Pois proponho uma análise de democracia a partir das diferenças, o que até pode parecer paradoxal, já que “todos são iguais blá, blá”…

Há quem diga, inclusive, que o reconhecimento, a aceitação e a manutenção das diferenças, com vistas à construção da igualdade de oportunidades, pode se constituir até como chave de desenvolvimento do país! Ora, vejam só! Dessa forma, o fundo abismo criado em nome de uma suposta igualdade constitucional, que acaba por se consumar partindo de injustiças estruturais graves, se torna de alguma forma menos fundo, já que haveria, evidentemente, um esforço reconhecível empreendido, com reais políticas públicas no rumo das oportunidades, o que concorreria para que muitos desses abismos, que “selecionam” as pessoas e barram as oportunidades, viessem a ser paulatinamente desfeitos.

Os olhares do filósofo Paulo Freire indicam exatamente esta trilha, quando vem falando desde há mais de 50 anos, sobre “educação libertadora”, encontrando-se, em determinado trecho, com a Teologia da Libertação, o que torna ambas as propostas muito atuais e nos colocam frente a frente com a possibilidade de uma nova forma de democracia!

há grupos organizados que definem quem come e quem não come, quem pode ter casa para morar e quem não pode, já que a carência alimentar do corpo é cruel e seletiva e a moradia é um privilégio! Leia mais: https://www.neipies.com/fome/

Autora: Ir. Marta Maria Godoy

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