Construindo contos e romances: personagem, conflito e espaço

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Em geral os iniciantes dizem que “eu escrevo para mim, como eu gosto, como eu quero e pronto”, e não há nada de errado nisso, desde que o objetivo desse autor seja guardar sua história apenas para si. Agora, um autor que pretende ver seu livro publicado precisa pensar no leitor.

Todos temos a capacidade de sermos escritores, pois já possuímos, natas, as ferramentas do contar. Antes mesmo de poder falar ou escrever, nós já contamos histórias. Nós podemos imaginar um homem das cavernas que, se saía para caçar e enfrentava algum perigo, alertava seu grupo através de gestos e pinturas nas paredes, sem auxílio de um vocabulário complexo, apenas evocando suas memórias, observações e, quem sabe, até mesmo sua imaginação.

Pedro Gonzaga e Jane Tutikian descrevem em seu livro “Escreva! Guia de escrita criativa” que essas são, de fato, as 3 ferramentas básicas que todos nós temos e que são imprescindíveis para a escrita.

1. A memória: seja mental ou física, a memória diz respeito às sensações, como a memória de caminhar, de sentir um cheiro ou gosto. Como são muito pessoais, a memória é uma ferramenta capaz de particularizar e transformar um texto abstrato em um texto concreto, cheio de sensações que são percebidas e envolvem o leitor.

2. A observação: de gestos, de imagens, de ações e expressões. Para contar uma história e acessar as nossas memórias de forma sensível a ponto de tocar as sensações do leitor, nós precisamos nos atentar às pequenas expressões dos acontecimentos. Pedro Gonzaga e Jane Tutikian apresentam, para isso, um bom exercício: tentar observar as coisas, as pessoas ou as situações como se víssemos aquilo pela primeira vez. Observar mais de perto ou mais de longe, observar por mais tempo, até aquilo gerar um estranhamento e consigamos fugir dos olhos do senso comum. E, a partir daí, tentar perceber o quão carregada de conflito e significado é aquela coisa, pessoa ou situação aparentemente comum. Fazer anotações durante o dia sobre coisas que vemos, percebemos ou simplesmente achamos interessante também é um bom exercício e que contribui, inclusive, para aumentar a nossa produtividade, agilidade e fluência na escrita.

3. A imaginação: apenas a memória e a observação já são úteis para a comunicação, mas a imaginação é imprescindível para a criação de um texto ficcional. O autor precisa ter a capacidade de criar e até de pensar no absurdo a partir daquilo que foi memorizado e observado. E é importante aqui diferenciar a imaginação daquela inspiração que bate sem querer num dia qualquer, oferece-nos uma história quase pronta e muito ânimo para sentar e escrever. Essa inspiração miraculosa até acontece, mas é rara, enquanto que a imaginação todos nós temos todos os dias. É muito mais seguro, então, confiar na imaginação para escrever do que nessa inspiração errática.

O que o autor iniciante, principalmente, precisa entender, é que a imaginação e a criatividade também são trabalhos que advém da concentração, da tentativa e de exercícios. Um bom exercício é tentar pensar em um novo final para uma história simples e bem conhecida, e ir voltando na narrativa e imaginando o que precisa acontecer ao longo desse texto para que seja possível chegar ao novo final proposto.

Utilizar essas 3 ferramentas é ter subsídio para que o leitor se conecte com o texto, já que as sensações evocadas pelo autor e transmitidas na narrativa vão se conectar com as sensações do leitor, que busca exatamente isso: que suas sensações sejam evocadas durante a leitura.

Eu sei que muitos autores, em geral os iniciantes, dizem que “eu escrevo para mim, como eu gosto, como eu quero e pronto”, e não há nada de errado nisso, desde que o objetivo desse autor seja guardar sua história apenas para si. Agora, um autor que pretende ver seu livro publicado precisa pensar no leitor. Quem vai querer ler esse livro e por quê? O que você, como autor, pode fazer para atrair esse leitor e, principalmente, mantê-lo engajado na história até o fim?

Conhecendo a sua história e o seu leitor, o autor pode adequar a linguagem do seu livro, os elementos que ali aparecem, as sensações que ele quer evocar, criando condições para uma melhor reação do público. Portanto, deve existir uma consciência clara do autor quanto ao desenvolvimento da sua narrativa.

Como o poeta Ezra Pound disse uma vez: “A literatura é uma linguagem carregada de significado em seu mais alto grau”. Ou seja, as coisas não apenas acontecem porque sim em uma narrativa. Pelo contrário, os elementos evocados pelo autor têm razão de ser e aparecer em um momento ou outro da história. Para entender isso melhor, precisamos pensar na narrativa e como ela ocorre.

O autor Jéferson Assumção, no curso de escrita criativa da plataforma Quadro Amarelo, explica que a narrativa costuma ser construída através de mudanças de valores (de positivo para negativo ou vice-versa), isso desde as pequenas tramas até o arco maior dessa narrativa. Assim, a narratividade, esse processo de narrar, exige que eventos ocorram. Por exemplo: um homem colhe laranjas da laranjeira do seu quintal para levar ao seu amigo. Quando caminhava na rua com a sacola de laranjas, uma delas escapa da sacola e sai rolando pela rua (inversão de positivo para negativo). A partir daqui, o que acontece? A laranja rolando assusta alguém que estava distraído e essa pessoa é atropelada, ou essa pessoa é um outro amigo antigo do nosso personagem, que ele não via há muito tempo, havendo ali um reencontro? Uma sequência de eventos e transformações ocorrem para que a narratividade seja construída, até que se chegue a uma finalidade.

No seu livro “A poética”, Aristóteles já dizia que a história não tem um fim, mas uma finalidade. Isso quer dizer que, ao fim da nossa história, ela não só acaba, mas deve existir uma finalidade para a qual ela foi contada e porquê ela foi contada do jeito que foi.

Todos os elementos da narrativa, toda a causalidade precisa funcionar para que a história seja levada não apenas ao fim, mas à sua finalidade. Nesse sentido, Luiz Antonio de Assis Brasil diz que a narrativa precisa ser orgânica, comparada mesmo a um organismo que não tem início nem fim, mas onde tudo se encaixa e tem razão de ser para poder funcionar como uma unidade.

Na narrativa, os episódios também precisam fechar como uma unidade e, para isso, os autores precisam estar atentos às relações de causa e efeito entre esses episódios, e também atentos no sentido de não incluir nesse organismo elementos que não fazem parte dele, elementos de fora que possam ficar mal encaixados ou mal resolvidos na narrativa, porque o leitor percebe quando algo fica em aberto e isso pode frustrá-lo em relação ao seu livro.

Luiz Antonio de Assis Brasil ainda diz que, quando nós iniciamos o romance ou o conto, nós prometemos algo ao leitor e, no fim, precisamos ter cumprido essa promessa. Nós cumprimos nossa promessa com uma boa personagem, um enredo que desenvolve sua “questão essencial” mediante um conflito que aparece quando essa questão se choca com os fatos da vida. A personagem, portanto, é um elemento que deve ser criado com bastante cuidado.

Para o autor é muito fácil imaginar a personagem, ela já existe para ele. Mas para que ela exista da mesma forma para o leitor, essa personagem precisa ser humana.

Quando falamos sobre textos de ficção, não necessariamente a personagem precisa ser um ser humano, outros elementos também podem ser personagem, mas esses elementos precisam agir ou gerar reações, ou mesmo se “comportar” como seres humanos. É isso que o leitor espera, que sensações humanas estejam envolvidas ali. Durante a construção da personagem, então, ela precisa ganhar profundidade ao ponto de o leitor acreditar nela, já que ele compartilha a sua humanidade com a da personagem.

Para dar essa profundidade à personagem, o autor precisa conhecê-la, e uma das maneiras mais comuns e eficazes de se fazer isso é construindo um mapa de personagem, um conjunto de informações ou uma série de perguntas que devem ser respondidas sobre ela.

Nem todas as informações que você coloca ali vão ser abordadas diretamente na narrativa, mas quanto mais o autor conhece sobre essa personagem e consegue responder sobre ela, mais subsídio ele tem para desenvolvê-la de forma coerente no texto.

O mapa do personagem pode incluir as características sociais dessa personagem (o nome, estado civil, onde mora, terra natal, trabalho, estilo de vida…), as características físicas (idade aparente e idade real, etnia, altura, peso, cor dos cabelos e dos olhos, características marcantes do rosto e do corpo…), a família (quem são os pais, o cônjuge, os filhos…), como foi sua infância e juventude, quem foram/são seus amigos e inimigos, suas crenças, visão política, qualidades e defeitos, locais, esportes, filmes estilo musical favoritos, o que o faz feliz ou triste, o que ele mais ama ou odeia, sua maior conquista e maior fracasso, do que mais se envergonha, seu segredo mais sombrio e seu maior desejo.

Conhecendo tudo isso, quando necessário que essa personagem responda a algum estímulo na história, o autor consegue descrever uma resposta coerente com o que vem sendo descrito sobre ela até então, coerente com a pessoa que ela é. Porque a nossa proposta é que aquela personagem seja um ser humano e se comporte de acordo com a sua própria personalidade, profunda e cheia de questões íntimas como todos nós temos. E são justamente essas questões íntimas que a aproximam da humanidade que o autor busca dar a ela.

Se formos pensar no porquê de alguns personagens agradarem tanto na literatura, a resposta vai ser a presença de uma questão íntima forte, que acaba determinando as ações ou não-ações dessa personagem.

Jean Valjean, de Os Miseráveis, por exemplo: a questão essencial desse personagem é a dignidade, o que ele mais queria era ser digno. E ele até consegue, chega um momento da história onde ele é muito querido pela sua comunidade, ele se reconstrói e se torna prefeito. Mas isso é abalado (e aí surge o conflito) quando o policial Javert chega na cidade onde Jean Valjean está e acaba o reconhecendo como um certo criminoso. Temos aí, então, esse conflito entre os personagens, mas mais do que isso, temos uma questão própria do Jean Valjean que prende o leitor mais do que apenas o embate com Javert.

Podemos perceber que é essa questão essencial que cria o conflito da história quando se choca com os fatos da vida, e a narrativa segue para demonstrar como isso vai ser resolvido ou não. O conflito, então, não é exatamente um embate entre uma personagem a outra, mas mais do que isso.

Luiz Antonio de Assis Brasil explica que ele pode até decorrer de ações cruzadas das personagens, mas antes de tudo, ele é expresso por uma fórmula universal e abstrata: honra e desonra, bem e mal, vício e virtude, por exemplo. Geralmente, o conflito vai ser expresso por uma oposição de valores, mas uma oposição entre situações que são universais, e não apenas entre personagens.

O conflito da narrativa, portanto, é uma expressão genérica das tensões do ser humano. Por isso que, quanto mais universal o conflito, mais leitores ele vai abranger e convencer, porque o leitor também vive esses conflitos dentro de si, eles representam situações da vida real por mais ficcional que a história seja. Por outro lado, se pensarmos no conflito apenas como um embate entre uma personagem e outra, a história não se aprofunda e logo acaba. Por isso que, construindo a narrativa, o autor precisa estar ciente de qual questão essencial ele quer tratar e, para identificar isso, ele precisa aguçar a sua visão humana e profunda dos conflitos do dia a dia, das pessoas e das situações, e particularizar essa questão a partir das suas memórias e da sua imaginação.

Outro elemento que muitas vezes é negligenciado, mas que pode auxiliar o autor a desenvolver o conflito e a personagem, e ainda ajudar a envolver o leitor na narrativa, é o espaço.

Como leitora, eu me frustro bastante quando o espaço me é apresentado como uma fotografia estática, quase alheia à história, sendo que ele poderia interagir com o que está sendo contado. É muito mais envolvente quando o espaço se relaciona com o conflito e a personagem de forma mais subjetiva e indireta. Por exemplo: “Camila chegou no bar e observou aquela sala escura, de janelas fechadas e cheia mesas com toalhas quadriculadas”. Por que não desenvolver a personagem Camila em relação ao seu conflito e ao local onde ela está? Digamos que Camila está em um dia péssimo, então o autor pode dizer que Camila chegou no bar e imediatamente se arrependeu, porque a escuridão deixada pelas janelas fechadas a agoniava. Da mesma forma, as cores vivas das toalhas de mesa claramente recém lavadas, já que cheiravam a amaciante de lavanda, eram quase uma zombaria à sua tristeza.

O autor pode desenvolver o espaço e incluir a personagem e sua questão nele, para isso utilizando daquelas 3 ferramentas: memória, observação e imaginação.

Assim, o espaço pode também evocar as sensações humanas que o leitor busca durante a leitura: não só a visão, mas também o olfato, a audição, o gosto, o tato das coisas onde essa personagem está. Esses elementos todos podem também determinar o comportamento da personagem, inclusive influenciar suas atitudes e emoções.

Um bom exercício para isso é tentar descrever um espaço que inclua alguma pessoa que possamos observar e um conflito imaginário. E então, tentar responder: como é esse espaço? Como essa pessoa que estamos observando está se envolvendo com o espaço? Que emoções ela transmite? Essas emoções se relacionam de que forma com esse espaço? Propor questões como essas é sempre uma boa forma de desenvolver nossas ferramentas de escrita, já que as respostas para elas têm potencial de se tornar um romance ou conto bem constituído.

Este texto foi apresentado na noite do dia 15 de junho de 2023, em atividade do Projeto Moinhos – Literatura em movimento.

Autora: Letícia Copatti Dogenski

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