Como se produziu o ódio atual no Brasil?

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Relatório problematiza algumas questões: “Como se produz o ódio atual no Brasil e quem são seus agentes? Quais são as motivações e que estratégias mobilizam e alimentam o ódio? A quem interessa a produção e a manutenção do ódio? Que possibilidades se apresentam e que perspectivas existem para o seu enfrentamento? A educação tem alguma contribuição a oferecer?

O Relatório do Direito Humano à Saúde no Brasil 2022 objetiva refletir a temática do direito humano à saúde a partir do discurso do ódio que abalizou o país naquele ano. Se é amplamente aceito que esse discurso do ódio, anulador da alteridade, é uma das marcas da história brasileira, também é verdade que a partir do governo Bolsonaro ele ressurge e se acentua. Como decorrência direta do bolsonarismo direitos foram violados, as eleições de 2022 se tornaram um campo de Fake News e a democracia brasileira assistiu a uma das suas maiores crises em função de mais um golpe em curso.

Eis uma das grandes tarefas das forças democráticas e dos movimentos e entidades que lutam pelo direito à saúde: manter-se vigilante. Afinal, como nos lembra Bertold Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio”, e não há saúde sem democracia, assim como não há democracia sem saúde.

Leia também: Sempre no cio…: https://www.neipies.com/sempre-no-cio/

Nessa esteira, o Relatório problematizou algumas questões: “Como se produz o ódio atual no Brasil e quem são seus agentes? Quais são as motivações e que estratégias mobilizam e alimentam o ódio? A quem interessa a produção e a manutenção do ódio? Que possibilidades se apresentam e que perspectivas existem para o seu enfrentamento? A educação tem alguma contribuição a oferecer?” Essas questões são postas como centralidade pelo professor Eldon Muhl, ao refletir sobre o tema em A cultura do ódio e o ódio à racionalidade: os desafios das lutas populares no Brasil.

Para a produção do Relatório do Direito Humano à Saúde 2022, adotaram-se metodologia e formato diferentes das edições anteriores, pois compreendeu-se que o momento exigia uma reflexão acerca do tema e busca de estratégias de resistência e enfrentamento; como diz a epígrafe do texto “A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação” (Adorno, 1995, p. 119). E poderíamos acrescentar: para a luta dos direitos humanos e do direito humano à saúde.

Neste sentido, a riqueza do texto está na sua grande capacidade de “radiografar” os tempos atuais a partir das contribuições da Escola de Frankfurt e de ter sido discutido junto aos movimentos e entidades do Fórum DH Saúde.

No entanto, como escreve Eldon, no quarto item do texto, intitulado “Perspectivas e desafios das lutas populares no Brasil”,

“[…] não podemos ser ingênuos sobre o poder destrutivo do ódio, suas práticas ampliadas pela indústria cultural e a economia sustentada na violência. O enfrentamento dos mecanismos de manipulação e das patologias produzidas exige esclarecimentos sobre a produção e a reprodução do ódio e, ao mesmo tempo, a manutenção das condições que tornam possível o seu enfrentamento.”

O Relatório quer se constituir em um recurso, dentre muitos outros, que contribua nesse enfrentamento, pois faz-se necessário desvelar o ocultamento da discussão para construir estratégias de resistência e enfrentamento. Com isso, reafirmamos o objetivo do Relatório: contribuir com afirmação da democracia, do controle social, da organização social popular e da luta pelo direito humano à saúde.

Assim como nas edições anteriores, o Relatório Direito Humano à Saúde no Brasil 2022 é uma iniciativa do Fórum DH à Saúde e conta com o apoio da Misereor. Reiteramos o nosso desejo de que este Relatório, feito a várias mãos, fortaleça e nutra nossa esperança de estarmos sempre em movimento, comprometidos com a luta pelos direitos humanos e por um mundo melhor para todas e todos.

O ódio e o discurso do ódio na sociedade atual

O ódio com um fenômeno social decorre de contextos e de indivíduos que o mantêm. Sem a manutenção individual e grupal, o ódio não se desenvolve e não se reproduz. Ainda que possamos ter desejos destrutivos como indivíduos, eles somente se tornam efetivos quando os compartilhamos em grupos e os desenvolvemos em práticas objetivas. Ou seja, o ódio somente se manifesta de forma efetiva quando surge o discurso do ódio, isto é, o “discurso oral ou escrito que seja abusivo ou ameaçador e expresse preconceito contra um grupo específico, principalmente com relação à raça, religião ou orientação sexual” (Dicionário Oxford, apud Gomes, 2021, p. 474).

O ódio não é uma manifestação instintiva e espontânea, mas um ato que envolve alguma intencionalidade e determinação coletiva. Ele se configura nas interações que o instruem e alimentam, o que significa que ele precisa sempre da agregação entre os indivíduos para se tornar uma força capaz de promover ações de violência e agressão.

Nos termos de Gomes: os ideais que sustentam o discurso de ódio estão engendrados no tecido social, determinando o modo de agir de certos grupos da sociedade, organizados ou não. Assim, o afeto “ódio” se materializa por meio da linguagem, inserindo-se na forma de um conjunto de valores, no registro simbólico que dita tanto as relações entre os sujeitos quanto aquilo que cada um se percebe capaz de tolerar (2021, p. 474).

Discurso de ódio é a comunicação pública que procura degradar simbolicamente grupos e pessoas historicamente oprimidos ou sistematicamente discriminados. Como já dissemos, trata-se de uma forma consciente e intencional de gerar simbolicamente iniquidade entre pessoas por conta de uma categoria coletiva: origem, cor da pele, gênero, religião, orientação sexual, entre outras.

As intenções desses discursos podem variar, expressando sentimentos, xingamentos, defendendo ideologias, justificando desigualdades, relativizando a violência e a discriminação, expressando crenças religiosas, buscando visibilidade, mobilizando seguidores, coordenando atos de violência, sustentando governos retrógrados, além de através de outras expressões.

Assim como no antissemitismo, o ódio hoje existente é o ódio do indivíduo frustrado sobre si mesmo e seus iguais, igualmente fracassados. No entanto, é preciso atentar que o ódio não é essencialmente alimentado pela emoção ou pelo afeto, mas por uma ação afetiva que tem levado ao desenvolvimento de um dos elementos centrais desse conceito: o de que se trata de uma forma de discriminação concreta, objetiva, ou seja, de uma forma de exclusão construída sobre relações de poder baseadas em características coletivas, racionalmente justificado.

O ódio já não mais se apresenta como um sentimento de negação, mas como uma atitude de negação justificado por explicações históricas ou por argumentações consideradas resultantes de uma racionalidade cientificamente desenvolvida.

Os resultados desse processo são o embrutecimento humano e a submissão do indivíduo à condição de sentir-se incapaz de agir e reagir ao processo de dominação existente. Nessa situação, corpo e mente são paralisados pelo medo e ficam enrijecidos como cicatrizes, tal qual esclarecem Adorno e Horkheimer:

[…] no lugar onde o desejo foi atingido, fica uma cicatriz imperceptível, um pequeno enrijecimento, onde a superfície ficou insensível. Essas cicatrizes constituem deformações. Elas podem criar caracteres, duros e capazes, podem tornar as pessoas burras – no sentido de uma manifestação de deficiência, da cegueira e da impotência, quando ficam apenas estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia e do fanatismo, quando desenvolvem um câncer em seu interior. A violência sofrida transforma a boa vontade em má. E não apenas a pergunta proibida, mas também a condenação da imitação, do choro, da brincadeira arriscada, pode provocar essas cicatrizes. Como as espécies da série animal, assim também as etapas intelectuais no interior do gênero humano e até mesmo os pontos cegos no interior de um indivíduo designam as etapas em que a esperança se imobilizou e que são o testemunho petrificado do fato de que todo ser vivo se encontra sob uma força que domina (1947-1985, p. 240).

O conteúdo do discurso do ódio se baseia na depreciação de grupos que vivem experiências crônicas de violência, longos processos de subordinação, um histórico de condições de vida precárias e fracassadas.

Além de alimentar mentiras e inverdades sobre grupos e indivíduos, o produtor do discurso do ódio alimenta o sentimento de inferioridade, desqualifica os conhecimentos populares, deprecia a moral e os costumes das populações pobres, ridiculariza a visão de mundo que apresentam. ]

Sua prática de comunicação é de incitação ao ódio, do desprezo pelos diferentes, da discriminação dos não iguais, a negação pública de genocídios e dos crimes contra a humanidade; sua prática é a promoção de xingamento, de escárnios e de insultos contra adversários e opositores. Produzem e sustentam em nome de seus interesses notícias falsas e o negacionismo.

O cancelamento se torna a prática comum quando se sente ameaçado em sua certeza. O discurso do ódio é um grande desafio da atualidade. A própria ONU, em 2019, apresentou um documento intitulado “Estratégia e Plano de Ação sobre o Discurso de Ódio” e estabeleceu, em 2021, por meio de Resolução A/RES/75/309, o dia 18 de junho como o “Dia Internacional de Combate ao Discurso de Ódio”.

Em 2023, o secretário-geral da ONU, António Guterres, por ocasião dessa data, manifestou-se afirmando que

“o discurso de ódio é usado para alimentar o medo e a polarização, frequentemente para ganhos políticos e com um custo imenso para as comunidades e as sociedades. Incita a violência, exacerba as tensões e impede os esforços para promover a mediação e o diálogo. É um dos sinais de alerta de genocídio e de outros crimes atrozes. O discurso de ódio é frequentemente dirigido a grupos vulneráveis, reforçando a discriminação, o estigma e a marginalização. Minorias, mulheres, refugiados, migrantes e pessoas de diversas orientações sexuais e identidades de gênero são alvos frequentes. As plataformas de mídia social podem amplificar e espalhar o discurso de ódio à velocidade da luz. […]. Os nossos escritórios e equipes em todo o mundo enfrentam o discurso de ódio implementando planos de ação locais com base nessa estratégia. Iniciativas de educação, campanhas 23 de discurso positivo, pesquisas para entender e abordar as causas profundas e esforços para promover a inclusão e a igualdade de direitos têm um papel importante. Os líderes religiosos, comunitários e empresariais também devem desempenhar o seu papel (ONU, 2023).

Leia relatório completo: https://ceap-rs.org.br/relatorio/relatorio-direito-humano-a-saude-2022/

Edição: A. R.

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