Como mentir com estatísticas educacionais

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Muitos jovens não escolhem a universidade com base nas suas paixões. Todos dizem a eles: ‘Escolha a faculdade que vai lhe fazer ganhar dinheiro’. É assim que estamos corrompendo os jovens. (Núccio Ordine, filósofo italiano)

Um livro clássico intitulado Como mentir com estatística, escrito por Darrell Huff, publicado em 1954 nos Estados Unidos, o autor demonstra de forma muito direta como números que parecem tão fortes são na realidade frágeis, quando não totalmente falsos, formando castelos de areia que ruirão após uma análise mais detalhada, ampliada e desprovida de ideias preconcebidas.   

No país da desigualdade, a forma como os dados educacionais brasileiros são organizados e divulgados induzem, geralmente, a conclusões imparciais, pontuais e insuficientes para produzirem uma compreensão cabal dos verdadeiros impactos da educação na vida das pessoas e na estrutura da sociedade brasileira.

Cabe relembrar que, a educação, é um processo complexo que requer análises e evidências ancoradas em processos e séries históricas de médio e longo prazo.

O Censo da Educação Básica de 2022, divulgado recentemente, serviu de palco para reforçar teses parciais e conclusões tendenciosas. Ele apontou e destacou avanços no ano de 2022 se comparando com dados de 2020 e 2021, que foram os piores anos para a educação, devido a pandemia e a falta de políticas e gestão do MEC. Se estendermos a análise para os anos anteriores a pandemia, veremos que não tivemos avanço algum, pois, sequer recuperamos os avanços da década passada (2010-2019).

Outra perspectiva necessária é relacionar os impactos educacionais decorrentes das políticas do governo Temer (2016-2018) e suas reformas educacionais (BNCC, reforma “novo” ensino médio); do governo Bolsonaro (2019-2022) que praticou o desinvestimento em educação reduzindo 25% o orçamento para educação; relacionar com o descumprimento deliberado das Metas do PNE 2014-2024 pela União, Estados e Municípios, além do contexto pandêmico que ainda vivenciamos. Ou seja, a educação requer um olhar de totalidade por períodos históricos mais amplos e políticas (des)estruturantes praticados pelo estado brasileiro.

Porém, os próprios dados do Censo da Educação Básica (EB) de 2022 precisam de um outro olhar e questionamentos, como: Por que ainda temos 1,04 milhão de crianças e adolescentes fora da educação que é considerada obrigatória nesta faixa etária de 04 a 17 anos, conforme PEC-59/2009? Por que temos taxas de insucesso tão elevadas no 6º ano (4,3%) do ensino fundamental  e  9,8% no primeiro ano do Ensino Médio? Por que a Educação de Jovens Adultos (EJA) diminuiu 21,8% entre 2018 e 2022 chegando a apenas 2,8 milhões de matrículas em 2022? E, porque, o Ensino Médio que teve 347 mil matrículas (-5,3%) a menos em 2022, agravando uma tendência dos últimos 16 anos?

Aliás, sobre o Ensino Médio (EM), maior desafio da educação brasileira atual junto com o tema do financiamento da educação, precisamos ampliar o olhar para, no mínimo, três décadas atrás.

De 1991 até 2021, período de 30 anos, o EM cresceu 100%, passando de 1,56 milhões de matrículas para 8,5 milhões em 2005. Porém, desde 2006, descreveu – 15%, baixando agora para 7,8 milhões. Esta queda de mais 5,3%, somente em 2022, agrava esta etapa da educação básica, pois o Brasil continua com 48 milhões de jovens entre 14 e 29 anos.

Ao relacionarmos o EM com a expansão do Ensino Superior (ES) no mesmo período de 1991 até 2021, evidencia-se o paradoxo e a gravidade da condição educacional brasileira. O ES expandiu-se, no mesmo período, 475%, sendo 619% no ensino superior privado (período governo FHC) e, 245% no ensino público (período Lula/Dilma). Atualmente, a expansão no ES somente se mantém impulsionada pela EAD, que cresce no segmento privado, cujos ingressantes superam as matriculados presenciais.

As matrículas no EM estão em queda há 16 anos, formando anualmente, somente, 1,8 milhões de jovens. Este número é bem inferior aos ingressantes no ES, que superam 3 milhões ano, causando impactam no sistema de ensino superior federal, com ociosidade de vagas nas IES privadas e, inclusive, nas universidades públicas. Cabe lembrar que o ingresso no ensino superior está estagnado desde 2015 no Brasil, coincidentemente, após implementação das políticas dos governos Temer e Bolsonaro.

Portanto, não é a pandemia a responsável pela situação dramática do EM e do ES no Brasil, mas o desmonte das políticas públicas educacionais recentes, redução de investimentos e as reformas em curso. O “novo” ensino médio já está agravando e acentuando o insucesso dos estudantes e desmotiva que jovens de escola pública sonhem com formação de nível superior, incentivando a permanecerem no nível médio com qualificações profissionais fragmentadas. Por um conjunto de razões precisa ser revogado imediatamente. Reformá-lo não é a solução.  

Outras relações e estatísticas precisam ser consideradas quando abordamos a educação no contexto brasileiro. Tanto relatório da UNICEF, como pesquisas da FGV Social, abrem as lentes para a correlação com as desigualdades sociais, econômicas, a pobreza e a fome dos estudantes.

Segundo UNICEF, pelo menos 32 milhões de meninos e meninas no Brasil vivem na pobreza. O número representa 63% do total de crianças e adolescentes no país e abarca a pobreza em diversas dimensões: renda, alimentação, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e informação. É o que indicou a pesquisa As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil, divulgada em fevereiro de 2023 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Estudos recentes da FGVSocial sobre Retorno para Escola, Jornada e Pandemia, demonstram que: 1)  o segmento mais adversamente afetado na pandemia foram os estudantes novos, na faixa de 5 a 9 anos, que sofreram evasão mais alta; 2) o tempo de escola para alunos de 6 a 15 anos caiu drasticamente (2 horas e 23 minutos por dia útil); 3) a falta de atividades escolares percebida pelos estudantes é mais relacionada à inexistência de oferta nas redes escolares do que a problemas dos próprios alunos; 4) queda na qualidade do ensino brasileiro na pandemia foi superior em comparação com os demais países; 5) os estudantes mais prejudicados foram os mais pobres e residentes em regiões remotas, entre outras constatações. Portanto, não foi só a pandemia que impactou a educação, mas a falta de (re)ação dos gestores por meio de políticas públicas de inclusão e assistência em situação de emergência sanitária e educacional. 

Nesta perspectiva de ampliar as estatísticas educacionais com outros correlações e pesquisas, recente estudo publicado pelos pesquisadores Guilherme Lichand e Maria Eduarda Perpétua, da Universidade de Zurique (Suiça) e, Priscila Soares (USP), apontam que a elite econômica do Brasil capturou até 65% dos ganhos que os trabalhadores brasileiros tiveram com o aumento na escolarização para o nível fundamental, 60% para o nível médio e 30% para o superior, nos últimos 40 anos.

Neste período de quatro décadas, apesar dos avanços, os 10% mais ricos (o topo da pirâmide), continuaram ganhando até 50% mais que a metade mais pobre, ainda que eles tenham o mesmo nível de escolaridade. “Pelos resultados, podemos observar, se duas pessoas conseguem um diploma de ensino médio, ambas vão ter recompensas pelo investimento de tempo e dedicação, mas essa diferença é 50% maior se uma delas for da elite”, esclarece Lichand.

O que estes dados revelam é que os brasileiros de menor renda ganham menos no mercado de trabalho até mesmo quando conseguirem estudar mais. A discrepância ocorre, também, por questões raciais. A recompensa salarial para cada diploma é de até 50% maior para brancos e amarelos em relação a pretos, indígenas e pardos (pelos critérios do IBGE). Esta distância cresceu ao longo do tempo para o ensino fundamental e médio. Ou seja, talvez não seja o esgotamento da inclusão na educação, mas sim, o fracasso da inclusão em compartilhar retornos.

As categorias classe social, raça e gênero são fundamentais e estruturantes na educação.  

Esta perspectiva de análise de estatísticas educacionais, correlacionando com raça, renda e pobreza, desmonta a teses ideológicas da OCDE, dos Institutos e Fundações Empresariais, de perspectivas educacionais ancoradas na meritocracia individual, nas avaliações de desempenho, na ideologia “querer é poder” e no discurso simplista que a escolaridade por si só aumentará a renda dos trabalhadores em um país que ainda pratica o trabalho análogo a escravidão. No caso brasileiro, para os pobres, negros e indígenas não é corresponde e, inclusive, já é fator de desistência e descrédito para com o valor da educação em si.  

Por fim, não é a estatística ou o indicador educacional que mentem por si, mas a descontextualização e a linguagem secreta dos números, tão atraente em uma cultura votada para os fatos, empregada para reforçar, inflar, confundir e produzir simplificações enganadoras.

Métodos e termos estatísticos são necessários para relatar tendências socais e econômicas, pesquisas de opinião e censos, mas, na educação, requer-se responsabilidade ética, correlações de fatores diversos e análises enquanto totalidade e complexidade do processo formativo da condição humana.  

Autor: Gabriel Grabowski

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