Com a palavra as crianças!

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Chegará o dia em que veremos assegurados os nossos direitos básicos previstos legalmente, que nos garantem condições de vida saudáveis e dignas. 

Chegará o dia em que não escutaremos notícias envolvendo negligência, agressões, maus-tratos, abusos e mortes de crianças. É muito triste saber e ver que a violência contra a criança aumentou, reflexo que uma sociedade doente e perversa.

Chegará o dia, na escola, em que os nossos direitos de conviver, brincar, participar, explorar, expressar e se conhecer serão respeitados plenamente, o que implica materializar, fazer o que se diz e o que está proposto na documentação legal.

Chegará o dia em que as canetas e lápis cederão lugar aos pincéis e as tintas! Haverá cor, muita cor, tantas cores! E todas escolhidas por nós.

Chegará o dia em que os painéis e murais, “bem aprumados, arranjados, arrumados” pelos adultos, serão substituídos por nossos registros! Não haverá coisinhas penduradas, só o que nós construirmos.

Chegará o dia em que as trezentas e tantas datas do calendário não serão comemoradas, servirão apenas para evidenciar a certeza de um caminho que não devemos seguir.

Chegará o dia em que as festas acabarão! Porque já não existirão mais tantas datas para celebrar! Mas tem exceções: Para as festas que tocam o coração. Festas do reino da emoção!

Chegará o dia em que haverá o lá fora de fato, preparado para nos receber! Hoje ele existe, mas ainda não faz parte de nosso cotidiano, só em “ocasiões especiais”.

Chegará o dia em que a calçada e o piso sintético cederão espaço para grama, para o verde. Haverá também terra, muita terra. Haverá areia, muita areia!  Afinal, quem brinca é o adulto ou a criança? Por que ele interfere tanto no espaço que não ocupa?

Chegará o dia em que as árvores substituirão os brinquedos plásticos, porque eles não são instigantes e desafiadores!  Os galhos servirão para fazer os balanços mais perfeitos do mundo.

Chegará o dia em que a matemática poderá ser aprendida de forma acrobática! Em sala, poderá servir a mesa, por exemplo! Em cima da mesa, embaixo da mesa, de cima para baixo, de baixo para cima, ou para saltar de um penhasco, ou para ultrapassar um lago com crocodilos ferozes! Sem medos, receios, dúvidas ou anseios.

E os números? Eles servirão para contabilizar e valorizar o tempo em que NÃO estivemos a “raciocinar” com lápis e papel na mão, a contar, e contar, e contar. Porque não é assim que aprendemos a pensar! Olhem o entorno. Vocês terão provas suficientes sobre a redução e ausência do pensamento! O mundo está tosco, rude, inculto!

Chegará o dia em que os grafismos desaparecerão! E se não desaparecerem, que sejam propostos na companhia do verde e do vento. Novas literaturas serão acolhidas, trazendo oportunidades para situações de aprendizagem diferentes, sem a repetição que ocorre ano após ano, data após data, e não colaboram o suficiente para o que é necessário à vida.

Chegará o dia em que os desenhos e registos todos iguais desaparecerão. Será que é preciso explicar a razão? Não queremos forma! Queremos formação! Em vez de crianças formatadas, queremos ser crianças que sabem optar, criar, criticar, pensar, inventar, fazer, experimentar, opinar, participar e viver!

Chegará o dia em que os joguinhos orientadinhos que promovem habilidadezinhas e competenciazinhas sucumbirão!  Eles obstaculizam e até impedem o nosso brincar. E a gente quase esquece de como se brinca! E não sabendo brincar, quase nada poderemos fazer quando adultos. Inclusive, ser e agir como adultos.

Chegará o dia em que as nossas experiências de vida serão consideradas, e não vistas como “só coisas de criança”.

Chegará o dia em que nossas vozes serão escutadas. O medo de nos escutar e não saber lidar com o que dissemos será superado!

Chegará o dia em que não haverá só o azul para os meninos e só o rosa para as meninas. Queremos aprender sem doutrinas. Queremos todas as cores!

Nossos pais deixarão de olhar e criticar se nos sujamos. Deixarão de fazer de nossa vida uma “Checklist”. Deixarão de perguntar pelo número de páginas que escrevemos na escola. A primeira pergunta estão será: – Você foi feliz hoje?

E então, com brilho no olhar, cada uma de nós responderá: – Sim, hoje fui feliz!

Para ser feliz enquanto criança, e mais tarde, enquanto adulto, mudemos a Educação na família, na escola, na sociedade como um todo. Na Infância, só é preciso que a criança seja criança!

***

A educação faz uso de metáforas para tratar das próprias questões. Dewey, filósofo e educador norte-americano, faz uso deste recurso para explicar diversas situações, inclusive sobre a redução do entendimento de educação para simples ideia de aquisição de hábitos indispensáveis à adaptação do indivíduo a seu ambiente. O autor afirma que o crescimento/desenvolvimento pleno da criança acontece quando há a ação dela. Dito de outro modo, para aprender ela precisa ser ativa, o que significa para além da mera adaptação ao que lhe impõem. Caso seja considerada só a dimensão da adaptação, ocorre a promoção da educação técnico-transmissiva, já presente na época em que o autor escreveu, e revigorada na sociedade atual.

Em uma metáfora, o autor se refere ao aluno/criança como cera e ao professor como sinete. A educação, por sua vez, acaba sendo a ação do sinete para gravar na cera, a qual se deixa moldar passivamente, ao ponto de estar condizente com o objetivo almejado (DEWEY, 1979b, p. 50).

O aprendiz, ao receber como marca este tipo de educação, luta até certo ponto, para dar conta do que lhe é imposto, mas corre o risco da ruína. Como diz Dewey, metaforicamente, o aluno luta, mas acaba vencido diante do que a educação reivindica, pois morrem seus desejos, interesses e curiosidades. A formação que segue esse percurso se afasta dos ideais democráticos, razão da preocupação de Dewey, e motivo que o levou a elaborar a sua construção teórica.

Frente ao exposto, fica evidente que a democracia não consegue florescer em ambiente com condições formativas reduzidas. E, ainda, quando a educação alinha os seus princípios essenciais aos fins exclusivamente utilitários e os semeia para a maioria (massa), está fazendo uso de sementes ruins, que não vão dar bons frutos (democracia). Se a instrução mais elevada, ou seja, as sementes boas, forem semeadas para poucos, a colheita não será suficiente. Em outras palavras, a educação de qualidade é direito de todos, e talvez seja a única maneira de garantir a democracia.

Dewey aposta na formação integral, que contemple todas as dimensões humanas. É contrário à ideia do ensino reduzido à determinados elementos. A noção que se tem de uma educação direcionada somente ao ler, escrever e contar, segundo ele, ignora o que é essencial para a concretização e cultivo dos ideais democráticos. É preciso, neste sentido, resgatar as humanidades.

A preservação da democracia depende da organização de programas de estudo amplamente humanos, que ainda devem “apresentar situações cujos problemas sejam relevantes para a vida em sociedade e em que se utilizem as observações e conhecimentos para desenvolver a compreensividade e os interesses sociais” (DEWEY, 1979b, p. 212). Por isso, educar com base com o propósito limítrofe de se ensinar ler, escrever e contar é insuficiente.

A incompreensão sobre a importância de um programa educativo completo, por parte daqueles que deveriam ter esse conhecimento, pode ser um dos motivos de estarmos enfrentando um dos períodos mais conturbados da história. E o próprio autor, como mencionamos anteriormente, já nos alertava de que a escola não conseguiria, sem urgentes transformações, alcançar seus objetivos, mesmo sendo os elementares, reduzidos ao ler, escrever e contar. Tanto é verdade, quem nem isso a escola consegue!

Mas, voltando às metáforas, muitas outras são conhecidas no campo educacional, como a ideia de expressar a cooperação por meio do “tecido” que forma uma colcha de retalhos; o projeto coletivo explicado por meio do “barco”, com o argumento de que todos estamos nele; a ponta do “iceberg” que mostra uma parte mínima da realidade; a “bússola” que indica o professor como guia. Marinheiro, âncora, vela, raiz, asa e gaiola, essas e outras tantas palavras utilizadas na linguagem metafórica, explicam o universopedagógico, colaborando na reflexão e na construção de argumentos sobre a complexidade educacional.

A educação da infância, sob a ótica da “metáfora do bambu” nos leva a pensar sobre a condição de crescimento da criança, pelo viés deweyano. A planta tem o registro de crescimento mais rápido no mundo vegetal. A sua semente pode demorar até sete anos para brotar, mas quando surge no exterior, em apenas seis semanas, pode crescer 30 metros! E qual é o seu segredo? Durante o tempo em que permanece invisível no subsolo, lentamente vai gerando uma complexa rede de raízes horizontais que mais tarde sustentam o seu desenvolvimento.

Em relação à infância, podemos pensar nas tendências espontâneas, na capacidade de adaptação, assim como no respeito ao tempo da criança, por parte do adulto. Em todos os períodos a criança cresce, ora por dentro, ora por fora. No entanto seu crescimento depende do cultivo, precisa ser na justa medida, condição para que se desenvolva plenamente. 

A educação, pela metáfora da “esponja do mar”, é bastante conhecida e retrata a perspectiva tradicional combatida por Dewey. Ela mobiliza o pensamento quando questiona a visão de criança como ser poroso, que absorve passivamente o que o adulto transmite. É como um recipiente vazio a ser completado. Mas, pela outra vertente, podemos mudar o sentido da metáfora, na medida em que passamos a considerar a esponja como elemento vivo e dinâmico, no qual a vida flui. Por esse viés a educação mobiliza o pensamento, as ideias entram e saem.

A educação é como um “saquinho de chá” porque contém a essência de algo que se expande, ficando maior do que o que estava guardado em um simples embrulho. Também é apreciado com os sentidos, fica na memória graças ao sabor, aroma e calor. É melhor quando desfrutado em companhia, na interação com outras pessoas. Aqui, com base no que vimos da teoria de Dewey, podemos pensar na condição de crescimento, no continuum da experiência e as associações retrospectiva e prospectiva e também no valor do aparelho sensitivo para a criança, assim como a importância da interação social.

A metáfora textual é uma ponte(uso uma metáfora para explicar a própria metáfora) que liga os significados de diferentes palavras, ideias e conceitos. Algumas vezes é conexão poética, como a da obra Como pensamos (1979a), sobre professor, aluno, ensinar e aprender, escolhida para concluir esta reflexão, porque evidencia que cada um tem seu papel, o que é próprio do professor e o que é próprio do aluno.

“O único meio de fazer que os alunos aprendam mais é ensinar de verdadeiramente mais e melhor. Aprender é próprio do aluno: só ele aprende, e por si, portando a iniciativa lhe cabe. O professor é um guia, um diretor; pilota a embarcação, mas a energia propulsora deve partir dos que aprendem” (DEWEY, 1979a, p. 43).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DEWEY, John. Como pensamos. Tradução: Haydée Camargo Campos. São Paulo: Nacional, 1979 a. Atualidades pedagógicas; vol. 2.

DEWEY, John. Democracia e educação. Tradução: Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, 1979b. Atualidades pedagógicas; vol. 21.

Autora: Ana Lúcia Vieira

Edição: Alex Rosset

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