As pequenas mortes

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Não adianta tentar controlar tudo. Não adianta chegar no horário e pagar as contas em dia. Os pontuais e aqueles que não erram morrem. Até para os bons pagadores a morte chega. Os melhores momentos da vida chegam quando não se está prevenido.

Corri ao Teatro de Arena para ver o show do Júnior Almeida. Chateado por me atrasar, avancei apressado enquanto ele cantava Pequenas Misérias:

“Penso na morte quando acordo

Penso na morte quando vou dormir”.

Bateu um arrepio. No dia anterior, um carro avançou em minha direção após sobrar na curva, obrigando-me a jogar o meu veículo para o acostamento e quase rodar. A quase morte chegou para lembrar que existe e é implacável. Muitas vezes nós fingimos não vê-la, que somos invencíveis e que ela não irá nos alcançar, bastando acelerar bastante a vida mas esse é a única parte não negociável do destino.

Enquanto a minha mulher cantava no mesmo show, fiquei pensando na possibilidade de deixar a nossa filha sem pai. Pensei na ideia de que morremos um pouco várias vezes antes da morte definitiva.

Morremos um pouco quando a sorveteria que foi palco do primeiro sorvete no Rio de Janeiro fecha e deixa de existir. Também morremos ao perder um dente jogando tênis no último dia de carnaval, ao não ser aprovado vestibular ou ao ver um amor medíocre ir embora. Ao perceber que o dinheiro não vai dar para terminar o mês, ao ter um retorno da escola sobre os problemas na atenção da filha, ao saber que um amigo querido morreu de COVID, ao mudar-se do Rio de Janeiro; a morte também quase nos alcança.

Quando a depressão nos pega ou Burnout come nossos sonhos há um recado da morte: viva enquanto há tempo. Na primeira brochada, ao perceber o primeiro cabelo branco e ao ver com desdém o casamento daquela pessoa que supostamente poderia ser ideal para gente; a idealização de quem somos morre e com ela um pouco nós.

Há morte na falha da voz do Milton Nascimento, na falta de ingressos para ver a Andrea Beltrão em Antígona, no Caetano Veloso atravessando a rua no Leblon ou ao final de um show do Chico Buarque.

Há um recado da morte quando noto que o tempo é implacável e “diditeca” já virou bicicleta no vocabulário da Lua, ao ver o primeiro dente de leite da minha afilhada cair, ao esquecer qual foi o motivo da primeira briga entre elas.

Há um tanto de morte ao imaginá-las morando sozinhas em São Paulo em um apartamento cheio de gatos e plantas em Santa Cecília, enquanto cultivam franjas e amores. Todavia, eu morro mesmo é quando me deparo com a verdade irrefutável de que as minhas pequenas meninas não são eternas.

Mais tarde, encontrei com o Júnior Almeida no pós-espetáculo e lembrei-me de uma história. Contei a ele que fui atrasado para uma aula de psicanálise e que ao chegar esbaforido, ouvi a coisa mais impactante que alguém disse durante a residência médica.

O professor provocou: “Sabia que nós morremos três vezes?”. O espanto foi geral e o homem prosseguiu dizendo que morremos primeiramente quando nossos pais morrem, pois vão embora com eles memórias da nossa vida sobre as quais não teremos mais acesso. É a morte das primeiras memórias. A segunda morte é a nossa própria morte e contra essa não há remédio. É o padecimento da matéria. A terceira e mais dolorosa morte é quando a última pessoa entre todas aquelas que nos conheceram ao longo da vida também morre. É a morte que nos leva ao total esquecimento.

Acho que é disso que se trata: passamos a vida inteira lutando contra o esquecimento e contra a nossa ínfima importância. Tentamos driblar a morte e o esquecimento com a arte, com grandes conquistas e grandes momentos. Com amores e desamores.

Queremos ser queridos, olhados, lembrados. Queremos não morrer na vida do outro. Começa pelos nossos pais e familiares, descambando por todos aqueles que nos atravessam. É uma luta injusta, inglória e já dada como perdida, no entanto, nós nos ocupamos disso na maior parte do tempo em vivemos.

Não queremos virar um nome vago na cabeça de alguém. Buscamos fazer grandes coisas pra deixar o nome registrado em algum lugar, dando ares coloridos a nossa pequena existência na amplidão de pessoas e do tempo. É um fuga desesperada de um destino que sempre nos alcança.

Não adianta tentar controlar tudo. Não adianta chegar no horário e pagar as contas em dia. Os pontuais e aqueles que não erram morrem. Até para os bons pagadores a morte chega. Os melhores momentos da vida chegam quando não se está prevenido.

Eles chegam quando não nos defendemos, matando certezas inabaláveis que estavam entranhadas dentro de nós no susto. E só é possível ter vida quando encaramos de frente que há morte. Todo dia algo morre. Todo dia algo nasce. Vivemos várias vidas dentro de uma só. Somos feitos de várias formas, faces e personalidades que se fundem e se expandem ao longo do tempo. Que nascem já certas de morrer e que morrem já certas de que algo novo está para chegar.

Os grandes momentos da vida não tem hora. Eles podem acontecer no show do Júnior Almeida mesmo com todo o meu atraso. Eles chegam atrasados, mas sempre chegam.

Por falar em grandes momentos há pouco tempo tive um, distraído e deitado com minha filha na rede. A pequena me perguntou se eu iria morrer. Eu respondi um atônito sim e ela chorou, já retaliando: “Se você morrer eu vou arrumar outro pai para não ficar sozinha”. Aquilo me pegou de surpresa.

Silenciei e logo depois menti ao dizer ter certeza que iria demorar muito para que esse dia chegasse e que não havia motivo para preocupação. Menti por uma boa causa. Ela continuou: ” E quando você morrer, vai lembrar de mim?”. Respondi rápido: “Vou, minha filha. Em qualquer lugar que eu esteja você nunca será esquecida”.

Ela saiu, como se a resposta a confortasse momentaneamente, limpando as lágrimas e dizendo:

– Não tem como você morrer, papai. Você vive dentro de mim. Você vai viver pra sempre.

Não retruquei a resposta. Com os olhos cheios de lágrimas, totalmente vulnerável, dei-lhe um abraço demorado com todo meu amor. Ela não entendeu o quão profundo aquilo me tocou e foi logo querendo fugir para brincar de outras coisas.

Eu perdi todo o chão, mas me sentia livre. Naqueles segundos em que estivemos abraçados eu me senti driblando a morte e mais vivo do que nunca. Naquele exato instante, senti que juntos seríamos imortais.

Autor: Fernando Tenório Nunes

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