Anacronismos e racismo em Monteiro Lobato?

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Discutir o racismo é relevante no nosso tempo histórico.
Somente com análises críticas da formação da
nossa história e do conhecimento da postura de
seus sujeitos influentes é que poderemos compreender
melhor o mundo que somos e o mundo que
desejamos construir no agora, e logo adiante.


Uma boa publicação é aquela que é capaz de gerar grandes debates. Uma publicação nunca abarca a totalidade do pensamento, ainda mais quando é escrita na perspectiva do dialógica das crônicas.

Publicamos o texto Monteiro Lobato seria um racista? no último final de semana. Ao compartilharmos o texto em diferentes grupos nas redes sociais, percebemos o potencial de debate e questionamentos que este suscitou, levantando questões da vida pessoal e de relevância do autor/escritor Monteiro Lobato.

Decidimos, então, continuar conversando com os leitores do site, apresentando algumas repercussões de leitores e da própria autora, abordando as questões polêmicas levantadas. O legal é seguir conversando, levantando proposições, defendendo pontos de vista, que nada mais são do que vistas de um outro ponto. O leitor que nos acompanha tirará as suas próprias conclusões.

Discutir o racismo é relevante em nosso tempo histórico. Somente com análises críticas da formação da nossa história e do conhecimento da postura de seus sujeitos influentes é que poderemos compreender melhor o mundo que somos e o mundo que desejamos construir no agora, e logo adiante.

Somos muito gratos com aqueles e aquelas que se dispõem a um debate democrático e respeitoso, com o necessário respeito a todos os pontos de vista.

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Pablo Couto, professor de língua portuguesa e Mestre em Análise do Discurso, morador de Canoas, RS, escreve que “Monteiro Lobato era sim racista. Há uma vasta literatura falando sobre isso. O racismo está presente em sua vida pessoal, inclusive com críticas a Machado de Assis apenas pela cor da pele, e também em sua obra.

Não há anacronismo nenhum nessa afirmação, até por que vários intelectuais já rebatiam as suas ideias. Monteiro chegou a elogiar a Ku Klux Klan e lamentar que o Brasil não tivesse algo parecido.

Agora, concordo com você em um ponto: não acredito que ele deva ser silenciado ou excluído dos livros de história e literatura. No entanto, a contextualização do racismo em sua obra deve ser feita quando aparecer na escola. Deve-se abrir também uma discussão sobre as raízes escravagistas e suas consequências em nosso meio social”.

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Ricardo Jones, 60 anos, morador Porto Alegre, graduado em ginecologia, obstetrícia e homeopatia, ativista da humanização do nascimento, escritor e palestrante, escreve um texto que dividiu com a gente para manifestar seus pontos de vista.

Anacronismos

“Não há dúvida que Monteiro Lobato era racista. Mais ainda, era um eugenista, um entusiasta da KKK e um racista ATIVISTA, mais do que apenas um sujeito com preconceito racial. Foi membro da sociedade paulista de eugenia e divulgador dessas ideias, as quais – no início do século XX – tinham uma aura cientificista.

Todavia, esta não é a mais importante abordagem.

O que me parece urgente debater em tempos de “cancelamentos” a respeito da “questão Monteiro Lobato” é o quanto é possível “separar autor de obra” e se é adequado que sejam feitos julgamentos sobre figuras da literatura fora do devido contexto histórico. Ou seja, separar a obra das questões subjetivas de quem a escreveu e não sucumbir ao anacronismo – o julgamento de um sujeito apartado de seu tempo.

Nem é necessário ir muito longe. Na minha própria experiência pessoal existem claras lembranças de uma época em que tais ideias não recebiam da cultura o adequado contraditório. Ao longo de toda a infância eram comuns as piadas racistas, as quais eram contadas impunemente para qualquer um – inclusive por mim – pois eram tratadas na cultura como “brincadeira”, “chiste”, “jocosidade”, etc.

Não há dúvida, entretanto, do seu conteúdo racista e segregacionista quando exposto às luzes do século XXI. Usava-se da piada para encobrir um conteúdo separatista, um apartheid informal e subliminar, essencial e estrutural, que se expressava em uma forma extremamente potente de coesão cultural: o humor.

O mesmo ocorria com as piadas homofóbicas. Na minha época, um dos humoristas mais celebrados era o “Costinha”, um dos artistas mais engraçados do seu tempo. Entre suas piadas, 90% eram sobre gays, “bichinhas”, como ele dizia, homossexuais com atitudes afetadas. Hoje em dia suas piadas seriam um escândalo, mas apenas 40 anos nos separam do seu auge como piadista. Julgar Costinha – e não suas piadas – seria um anacronismo, assim como julgar Monteiro Lobato sem levar em conta o entorno cultural em que estava envolvido.

Outro aspecto é pensar sobre Monteiro Lobato e esquecer a vida pessoal – e até a obra – de tantos outros escritores. Devemos, por exemplo, esquecer a obra de Heidegger ou Celine por suas vinculações com o nazismo? Seria justo apagar a música de Michael Jackson pelas acusações que recebeu – em vida e depois dela – de abusos sexuais contra menores? É adequado esquecer o racismo explícito de Humberto de Campos e Fernando Pessoa (sim!!!) ou devemos sorver suas obras e descontar os erros de seu tempo?

E a defesa da pedofilia de Simone Beauvoir? Deveríamos relevar estas manchas em sua biografia e continuar aprendendo com seus textos precursores do moderno feminismo? Ou devemos também apagar todos os seus escritos?

E o que fazer com os feitos de médicos brasileiros como Miguel Couto, Roquette Pinto (médico e pai da radiodifusão no Brasil), Renato Ferraz Kehl e tantos outros que participaram da Sociedade Paulista de Eugenia? E quanto a literatura infanto juvenil? Vamos “cancelar” Lewis Carroll pelas acusações de pedofilia que foram feitas contra ele?

Deveriam as crianças todas do mundo ser privadas das aventuras de “Alice no país das Maravilhas” pela suspeita de uma falha ética do seu autor? Pior ainda: devemos destruir a obra de Woody Allen, falsamente acusado de abuso sexual, apenas para agradar a “patrulha”? E o que fazer com a pedofilia de Charles Chaplin?

Se um antropólogo achasse, mas areias da Galileia, um manuscrito essênio que revelasse uma mancha moral gritante de Jesus, seria justo acabar com o cristianismo em nome da purificação necessária para limpar esta mácula?

Há um adágio antigo que nos diz: “As virtudes são dos homens, as falhas são do seu tempo”. Eu li toda a obra de Monteiro Lobato na entrada da adolescência e não percebi nenhum racismo explícito nela. Não que não houvesse; ela estava evidente na topografia dos personagens, mas este racismo sutil ainda era invisível nos anos 70. Somente agora podemos percebê-lo para julgar sob esta nova perspectiva.

O mesmo digo dos outros autores.

Não há mal algum em apontar a pedofilia, o nazismo e o racismo nos autores. Também é justo mostrar estes erros nas obras que escreveram, mas é fundamentar não se deixar levar pelo anacronismo, julgando um sujeito fora do seu tempo e da cultura que o envolvia.

Monteiro Lobato e muitos outros devem ser mantido nas escolas exatamente para que se possa debater com os alunos sobre os valores de meados do século XX. Apagar a história, mesmo em nome de valores nobres, empobrece a cultura.

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Ipácio Carolino, do Movimento Negro em Passo Fundo, RS, contribui com a discussão posta pela publicação, com o envio desta reflexão que segue.

Dualidade… Ambivalência.

Somos seres compostos de duas metades, duas faces, luz e sombras. Potencializamos um lado, mas não anulamos o outro. Podemos encontrar pitadas de genialidade em alguém que demonstra ser ignorante e também acharmos doses de perversidade em quem se diz bom.

Quanto ao autor em questão, não há dúvidas de que é racista; suas obras e declarações provam isso. Quem o elencou à apreciação literária foi a elite branca. Nós, negros, somos maioria nesse país e nunca nos foi dada a oportunidade de escolher obras e autores que achamos importantes para apresentar à classe estudantil. Lembrem, nossas crianças negras também são estudantes.

A supremacia, ou a superioridade branca, sempre nos foi imposta, sempre nos foi colocada como norma, o que não significa que tenha sido por nós entendida e aceita como tal.

Estamos em tempos de profundas, necessárias e inevitáveis revisões históricas e conceituais. Todas as estruturas estão sendo postas à prova, todos os sistemas, instituições e lideranças, estão sendo questionados; negros não voltarão para a senzala, gays, não retornarão para o armário, a Amélia deixou de ser a mulher de verdade…

Nada será como antes. E não será, porque nós não queremos que seja.

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Para a escritora e filósofa Rosangela Trajano, a autora do texto “Monteiro Lobato seria um racista?”, “o escritor veste-se de mundos nunca antes visitados por outras pessoas, pois eles são criados entre a imaginação e a realidade vivida ao longo dos seus anos.

O contexto histórico diz à realidade como deve comporta-se e a imaginação usa essas imagens contextualizadas para falar daquilo que se vê, ouve e toca. Não podemos comparar o escritor com o cidadão nunca. Um vive na imaginação e o outro na realidade, os dois encontram-se no momento da inspiração divina dada pelas musas, como assim relata Platão no seu diálogo Íon.

Não foi surpresa a repercussão de tantos comentários e compartilhamentos no meu pequeno ensaio e fico feliz que ele tenha repercutido e criado várias discussões sobre ser Monteiro Lobato um racista ou não.

Na verdade, não quis deixar uma opinião formada, apenas expus o aspecto da sua literatura e ratifico que não vejo racismo nas suas lindas obras. Elas afirmam o conhecimento de mundo adquirido pelo autor ao longo dos seus anos expondo na sua literatura ficção e realidade, quem sabe um pouco mais de realidade seja possível encontrar em Monteiro Lobato. Talvez seja difícil para muitas perceberem isso, mas basta esquecer o cidadão Monteiro Lobato e deliciar-se com a sua obra que tão bem educa crianças e jovens.

Longe de mim defender o racismo, uma vez que sou mulher negra e sofro preconceito em vários lugares onde vou no meu país. Sei a dor que é sentir-se humilhada e tratada pela cor da sua pele.

Ninguém queira passar o que passo nas lojas de grifes, nos restaurantes de luxo ou quando vou comprar um objeto de valor significativo. Outro dia, um colega perguntou-me porque eu não cortava meu cabelo já que estava saindo feia nas fotos e escritor tem que sempre estar bonito.

Vale ressaltar aqui que meu cabelo é cheio de cachinhos. Sou neta de uma indígena e de uma negra que me contavam histórias belíssimas. O meu mundo não é branco com azul, mas negro da cor da noite sem lua.

Já chorei e fui para a delegacia prestar queixa de racismo quando quis comprar um relógio na loja de um grande shopping da minha cidade e o vendedor disse-me que era caro demais para eu comprar, levando-me para uma seção de relógios mais baratos. Disse-lhe que queria o que gostei, e ele insistiu perguntando se eu tinha visto o preço porque a cor da minha pele não combinava com o relógio da vitrine e nem com o seu valor.

A quem pensa que não sei o que é racismo, está enganado. Eu sou vítima desse crime quase todos os dias, basta sair de casa com as minhas sandálias de borracha e minha mochila de pano nas costas. Lá vai a nega amostrada, isso eu ouço “carinhosamente” da minha vizinha do outro lado da rua que já é uma senhora branca e cheia de afeto por mim, mas ela não sabe o mal que me faz todas às vezes que diz isso.

Não julguemos as pessoas pelo que escrevem. O girassol não deve ser julgado quando está recolhido na madrugada fria, mas ao meio-dia quando mostra o seu rosto ao mundo”.

Racismo é crime!



Fotos: Divulgação/arquivo pessoal

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