“O atendimento na delegacia da mulher precisa
ser diferenciado e vir com essa carga de carinho e acolhimento
para que essa vítima tenha liberdade para procurar a Delegacia”

 

Há oito anos atuando como Delegada, Rafaela W. Bier é, há cerca de um ano, Titular da Delegacia Especializada ao Atendimento à Mulher – DEAM, de Passo Fundo, que também atende os municípios de Coxilha e Mato Castelhano. Neste mês de setembro, Rafaela inaugura uma nova editoria da Revista Contato VIP, que vai trazer entrevistas e reportagens com mulheres que se destacam em suas profissões. Em nossa conversa, ela ressaltou questões pertinentes à violência doméstica, a lei Maria da Penha e ao trabalho feito pela Polícia Civil, que atende em média 160 ocorrências de violência doméstica por mês.

 

Por ser mulher, de que forma você enxerga o trabalho desempenhado pela DEAM na proteção as vítimas de violência doméstica na região?

Sou e estou sensibilizada com a questão da violência doméstica e acredito que isso faça o atendimento ser mais acolhedor. O atendimento na Delegacia da Mulher precisa ser diferenciado e vir com essa carga de carinho e acolhimento para que essa vítima tenha liberdade para procurar a Delegacia, para então agirmos de forma mais rígida com o agressor. Toda equipe é muito qualificada para fazer esses atendimentos, uma vez que o trabalho de polícia é muito complexo, lidamos com crimes de diversas espécies, trabalhamos tanto na repressão criminal, quanto na prevenção, tudo objetivando evitar a ocorrência de feminicídios.

 

O que pode ser considerado um tipo de violência doméstica?

Essa violência pode ser um xingamento e, configurar, portanto, um crime contra a honra da mulher; um crime patrimonial, que acontece quando o agressor danifica os bens da mulher ou da casa, por exemplo, quando ele queima suas roupas ou furta o seu celular; um crime contra a liberdade sexual, uma vez que mesmo em uma relação entre cônjuges, companheiro, namorados, etc., a vítima tem a liberdade de praticar ou não uma relação sexual, sob pena do cometimento do crime de estupro. Ainda, crime de lesão corporal, que acontece quando a vítima é agredida e as agressões deixam marcas; as contravenções penais de vias de fato, que são agressões que não deixam vestígios, como um tapa no rosto. Da mesma forma em relação ao crime de ameaça, que ocorre quando o agressor afirma que irá matar aquela vítima ou que irá agredi-la. Por fim, dentre outros crimes, temos o feminicídio. Em Passo Fundo, contamos hoje com a instauração de 6 inquéritos policiais por feminicídios, cinco tentados e um consumado.

 

Por que se faz essa diferenciação para o feminicídio?

O feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio. Há essa diferenciação porque no feminicídio existe uma questão de gênero envolvida, ou seja, há um aumento de pena em razão daquela vítima ser do sexo feminino, e, normalmente, envolve questões domésticas e/ou familiares. É um crime que pode ser praticado pelo companheiro, pelo namorado, pelo “ficante”, pelo filho, pelo genro, pelo cunhado, por todas aquelas pessoas com as quais a vítima conviva ou tenha convivido em âmbito familiar ou doméstico, contra uma mulher em razão da condição de sexo feminino.

 

Quando uma mulher procura as autoridades para denunciar uma violência, o que é feito em seguida pela Delegacia da Mulher?

A vítima relata o seu problema para a nossa assistente social, que trabalha no sentido de trazer um acolhimento para essa vítima. Ato contínuo, é feito o boletim de ocorrência, bem como lhes são ofertadas as solicitações das medidas protetivas de urgência, como a proibição de o agressor manter qualquer contato com a vítima. Também lhe é propiciado ser acolhida na casa de apoio, uma casa vinculada ao município de Passo Fundo, onde a vítima pode levar os filhos até 12 anos de idade e lá permanecer por um período indeterminado até a concessão das medidas protetivas para que essa vítima possa retornar em segurança para o seu lar. Nessa casa ela vai ter toda a assistência de alimentação, estadia, assistência jurídica, psicologia, atendimento de assistente social, é uma rede completa de atendimento. Ainda, no atendimento inicial na Delegacia, é possibilitada a vítima atendimento psicológico, o qual é realizado através de um convênio firmado com a CEPAVI, a Clínica de Estudos, Prevenção e Acompanhamento à Violência, mantida pelo curso de Psicologia da UPF. Assim, caso a vítima deseje esse atendimento, já sai com o agendamento feito. A Delegacia está localizada em local discreto e estratégico, pois está sediada a cerca de duas quadras do CEPAVI/UPF, PROJUR/UPF e Departamento Médico Legal, possibilitando à vítima atendimento psicológico, jurídico e a feitura do exame de corpo de delito, respectivamente. Após esses tramites iniciais, é instaurado Inquérito Policial para apuração dos fatos, tudo objetivando a elucidação do crime, condenação e prisão desse agressor.

 

Muitas mulheres que sofrem violência doméstica acabam não procurando a ajuda das autoridades. Por que isso acontece?

Muitas mulheres não procuram a Delegacia por vergonha, por medo do agressor, ou até mesmo pela dependência financeira. Muitas mulheres dependem do agressor para a manutenção dos seus filhos. Ela prefere continuar sofrendo aquela agressão a ver os filhos privados de alimentação, moradia, etc.

 

Essa denúncia de violência doméstica deve ser feita somente pela vítima ou alguém fora da relação pode fazer uma denuncia?

A denúncia pode ser feita por qualquer pessoa, de forma anônima ou não. A partir da denúncia nós vamos até a vítima e verificamos a procedência da informação. Não se pode mais aceitar a máxima de que ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’. Hoje, em briga de marido e mulher o Estado deve meter a colher para evitar um mal maior, evitar a ocorrência do chamado feminicídio.

 

A Lei Maria da Penha completou 12 anos no Brasil. Quais foram os avanços conquistados através dela?

Tivemos uma alteração recente na Lei, que hoje possibilita a prisão do agressor quando ele descumpre as medidas protetivas. Antes não tínhamos essa possibilidade, porque não havia um crime específico para isso. Atualmente, desde o mês de abril, temos esse dispositivo legal, que permite a prisão em flagrante do agressor, não se admitindo o arbitramento de fiança pela autoridade policial, sendo o agressor diretamente recolhido ao Presídio Regional de Passo Fundo.

 

Durante esses anos, a Lei vem sendo efetiva? O que precisaria mudar para que os números de violência doméstica sejam reduzidos?

Infelizmente, a Lei Maria da Penha é uma lei de primeiro mundo para um país de terceiro mundo. É uma Lei muito bonita, que tem muitas práticas que protegem a vítima. No entanto, a falta de recursos humanos em todos os órgãos da rede de atendimento faz com que ela não possa ser aplicada em sua integralidade. Em que pese tamanhas dificuldades, o trabalho conjunto da Polícia Civil, Patrulha Maria da Penha da Brigada Militar, Ministério Público e Poder Judiciário, tem tornado a atuação de combate à violência doméstica efetiva no Município. Além de atuarmos na repressão, também temos um trabalho forte na prevenção, ministramos palestras em Colégios, Faculdades, Municípios próximos, tudo com a finalidade de esclarecer a população acerca dos direitos das mulheres e sobre inadmissibilidade de práticas abusivas que atentem contra a vida, integridade física e sexual, honra e patrimônio dessas vítimas.

 

Por vezes, a vítima que denunciou um agressor retira a queixa e volta a viver com ele. Mas existem muitos casos de recidiva da denúncia. Como vocês procedem nessas situações?

No que se refere aos crimes mais graves, tais como lesão corporal, cárcere privado, feminicídio, tal discricionariedade não existe. É obrigatória a instauração de Inquérito Policial. Ocorre que, existem casos que são facultados à vítima processar ou não o agressor. Exemplo: ameaças, vias de fato. Nesses casos, não cabe a nós julgarmos os motivos pelas quais a vítima tomou tal decisão, embora saibamos que a ‘fase de lua de mel’, pós-retorno do convívio, dure pouco tempo. De qualquer forma, independentemente de quantas vezes a vítima nos procure, estaremos de braços abertos para servir e proteger. Sempre destacando para a vítima que, em que pese a dificuldade da jornada, é possível viver feliz longe do agressor.

 

“O atendimento na delegacia da mulher precisa ser diferenciado e vir com essa carga de carinho e acolhimento para que essa vítima tenha liberdade para procurar a Delegacia”
Denuncie a violência doméstica!
Pelo telefone: (54) 3581-0725 | 180 | 197
Ou na Delegacia da Mulher, na Av. Nascimento Vargas, 153 – Centro – Passo Fundo

 

Esta entrevista foi publicada na Revista Impressa Contato Vip, setembro 2018. Confira outras matérias e reportagens aqui.

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