A vida em crise: quando a existência não encontra seu lugar. Questões antropológicas do tráfico de pessoas – parte 1

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A existência insatisfeita

Uma das características do ser humano é sua contínua insatisfação, o que o leva a sentir-se inacabado e até mesmo desafiado pela imensidão das coisas novas que conhece. Mas isto indica que todo prazer, alegria ou objetivo procurado vem de dentro de seu ser mais íntimo. E é por isso que toda ação externa -como expressão do caminho da realização- de procurar satisfazer as próprias necessidades se baseia em decisões que tocam o próprio núcleo da existência humana. Portanto, cada ação implica uma decisão na qual a mente, o coração, a alma e o corpo de cada mulher e de cada homem estão em jogo. Uma decisão de ser feliz ou não, de ser livre ou não, de viver ou não viver.

Na cultura individualista em que vivemos, cometemos o erro de ver a autodeterminação como o único valor. É um erro que leva a perder a riqueza da comunidade, do bem-estar coletivo. Neste sentido, o homo eligens (homem eleitor), antes de escolher por todos, decide escolher por si mesmo, dissociando-se de todos os laços com seus semelhantes, mesmo que ele aparentemente viva junto com eles. Tudo se torna pouco, limitado, líquido: “…a vida líquida se alimenta da insatisfação do eu com si mesmo…”[1]. E se as necessidades pessoais não são combinadas com as necessidades comunitárias, os horizontes se tornam mais estreitos e a existência perde seu sabor, torna-se insustentável. As maiores perversões humanas nascem desse vazio.

Existir em liberdade é pertencer a um lugar

Existir significa estar em pé hoje, mas com uma projeção para o amanhã. Existir vem do latim e significa “sair de, ser orientado para fora, aberto para”[2]. Portanto, existir significa viver, mas viver nem sempre é existir. Estar vivo não é necessariamente ser existente. Existir é viver em liberdade. A liberdade é a capacidade de viver de acordo com a existência.

Ser livre é ser dono das próprias decisões e realizar ações que nos constroem como pessoas e que colaboram na construção de um ambiente favorável a todas as criaturas. Esta liberdade é educada dentro da pessoa, é vivenciada, amadurece e é posta em ação em atos externos, mas que também têm a ver com a construção da consciência interior dos outros.

Neste sentido, ser livre implica estar enraizado no lugar que ocupamos no mundo, e este lugar não é apenas um espaço hipotético ou espacial, mas também tem a ver com um espaço físico concreto, o lugar onde vivemos. Tem a ver com o chão que pisamos, com a paisagem onde nascemos, com as pessoas ao nosso redor. Tudo isso compõe a cultura. Para sermos livres, devemos reconhecer a cultura da qual fazemos parte e com ela o solo que a constitui. O solo é o lugar onde pisamos, onde aprendemos a nos mover e de onde nos impulsionamos para o futuro. É o domicílio seguro que temos no mundo, como diz Kusch: “…não devemos realmente entender as transformações, exceto neste sentido único que a cultura proporciona, como algo que aponta apenas para minha vida aqui e agora”[3]. E o aqui é o meu terreno, o meu lugar.

Da privação ao não-lugar

O que acontece quando uma pessoa é violentamente arrancada de seu lugar, do espaço vital do qual faz parte, sendo privada de sua liberdade? Quem não puder ser o dono de suas ações, poderá tornar-se o dono de seus pensamentos. Mas isto é muito difícil, especialmente quando se é vítima de uma situação de total falta de escolha. Quem é forçado a deixar seu habitat vital, cai em uma situação de privação. Esta privação implica inação, a impossibilidade de reagir para se libertar. A tática a que se está sujeito é o isolamento, onde “…estar isolado é o mesmo que não ter capacidade de agir…”[4].

Aqueles que são obrigados a ir onde não querem ir sofrem uma contradição com sua própria natureza, porque ser livre é uma condição fundamentalmente humana, mas este direito nem sempre pode ser exercido.

A maior dor daqueles que estão sujeitos a esta situação é a sensação de estar fora de seu próprio lugar, o lugar onde realmente pertencem. É um não-lugar: a própria negação do ser, pois estar é estar em um lugar escolhido, amado, cuidado. Não-lugar implica a rebeldia do coração, do corpo e da alma para estar onde não se quer estar e onde não se está. É a sensação de viver, mas não existir, de respirar, mas não estar consciente do ser.

Martin Bubber disse: “O destino e a liberdade são solenemente prometidos um ao outro. Somente o homem (e a mulher) que torna a liberdade real para si mesmo, encontra o destino”[5]. E nesta situação, como o destino e a liberdade podem ser unidos? Quando a liberdade é tirada, o destino se perde, se esbate, deixa de existir. A única maneira de superá-lo é o caminho para a própria casa: voltar à terra do próprio nascimento.

O medo como fonte de tanta violência

Ao longo da história as grandes revoltas revolucionárias tiveram que superar o maior dos inimigos humanos: o medo; mas dentro do medo há uma que é a grande causa de todas as outras: o medo que sentimos de nós mesmos[6], dos sentimentos que nos causam dor e angústia e que é a causa de ações posteriores. Mas enquanto os povos nativos educaram gradualmente este medo em uma força de resistência e luta contra tudo o que os oprime, as sociedades modernas transformam o medo em violência. Violência que dá livre curso aos sentimentos mais sombrios do ser humano, daí os maus-tratos de outros vistos como um inimigo a ser subjugado e -se isto não puder ser feito- eliminado.

A violência pode ser analisada de três maneiras[7]: em nível pessoal, pelos próprios sujeitos, um contra o outro; em nível estrutural ou social e também por uma racionalidade como fruto da cumplicidade com o sistema que maltrata e mata indiscriminadamente tantos irmãos e irmãs em todo o mundo. Este sistema exclui aqueles que não entram na cadeia do consumismo, na qual as próprias pessoas são objetos de consumo.

A violência contra cada ser que é maltratado e arrancado de seu lugar implica sempre sua objetivação e de não ser admitido como igual, mas como um produto. Esta apropriação do outro como algo que eu posso lidar de acordo com minha vontade revela o grau de violência no trabalho na consciência de muitos de nós que, sem ir tão longe quanto a violência física, basta apertar uma tecla de computador para decidir sobre a vida de nossos semelhantes.

Autor: Diego Pereira Ríos

*Imagem tomada de: http://isabelborrego.com/archivos/720


[1] Bauman, Zigmunt, Vida Líquida, Buenos Aires, Paidós, 2012, p. 158.

[2] Boff,  Leonardo, La experiencia de Dios, CLAR, Bogotá, 1975, p. 23.

[3] Kusch, Rodolfo, Geocultura del hombre americano, Obras Completas Tomo III, Ross, 1975, p. 110.

[4] Arendt, Hannah, La condición humana, Paidós, Buenos Aires, 2013, p. 211.

[5] Bubber, Martin, Yo y tú, Galatea Nueva Visión, Argentina, 1960, p. 53.

[6] Russel, Beltrand, Nuevas esperanzas para un mundo en transformación, Hermes, Buenos Aires, 1964, p. 217.

[7] Richard, Pablo, Racionalidad perversa de la violencia, en http://www.amerindiaenlared.org/noticia/765/racionalidad-perversa-de-la-violencia/, 25 de enero, 2017

42 anos, uruguaio. Professor de Filosofia e Religião no Ensino Médio. Mestrando em Teologia Latino-Americana na UCA de El Salvador. Membro da Amerindia Uruguai, editor de Ariel Revista de originales de Filosofía, membro da RED CREA Cómplices Pedagógicos para América Latina, membro do Grupo Diocesano de Ecologia Integral "San Francisco", membro da Comunidade Bremen - Marcelo Barros no Brasil, escritor em Religión Digital, Espanha. Ganhou o 3º lugar no 1º Concurso Internacional de Ensaios de 2015 da REDLAPSI. Autor do livro "La fuerza transformadora de la esperanza" (Nueva Visión, 2016) e "En un camino liberador desde el Sur" (Rumbo, 2020). Contacto: pereira.arje@gmail.com

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