Escritora Marina Colasanti, vencedora de prêmio no México,
participará da conferência sobre igualdade de gênero,
no dia 5 de outubro.

 

Prestes a completar oito décadas de vida e vencedora do Prêmio Iberoamericano SM de Literatura Infantil e Juvenil, anunciado há poucos dias, Marina Colasanti é uma das escritoras mais esperadas para a 16ª Jornada Nacional de Literatura, que acontece de 2 a 6 de outubro, em Passo Fundo/RS.

Com mais de 50 livros, de contos, crônicas, poesia, ensaios e literatura infantile juvenil, Marina estará na Jornada no dia 5 de outubro para debater sobre a mulher na sociedade, durante a conferência “Por elas: a arte canta a igualdade”, ao lado dos escritores Federico Andahazi e Conceição Evaristo e do integrante do Comitê brasileiro do HeforShe (ElesporElas) Edegar Pretto.

 

Eu sei, mas não devia


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

 

Marina, que teve atividade marcadamente feminista nas décadas de 1970 e 1980, se considera uma feminista histórica. Nessas últimas décadas, segundo a escritora, o tema ficou esquecido e só agora as jovens retomam a questão da igualdade e do empoderamento.

Precisamos ainda discutir a posição da mulher porque, em pleno século XXI, as mulheres continuam ganhando menos do que os homens para realizar o mesmo trabalho, tendo menos acesso ao topo da pirâmide, carregando quase sozinhas as tarefas domésticas e os filhos (o Brasil continua não tendo creches suficientes), sendo demitidas pouco depois de voltar da licença maternidade, sendo assediadas, sendo espancadas e mortas”, declara Marina.

A escritora já participou da movimentação literária em Passo Fundo. A primeira vez foi na segunda edição da Jornada. Marina também ressaltou a importância da Jornadinha.

“A cidade e a Jornada eram muito diferentes, estavam ambas começando. Hoje, graças ao trabalho de tantos anos, graças ao empenho vital da professora Tânia Rösing, a Jornada tornou-se indispensável não só para Passo Fundo, mas para o Brasil. E seria injusto falar da Jornada e não falar da Jornadinha – da qual participei mais de uma vez –, pois a Jornadinha demonstra de forma cabal que, trabalhando a leitura desde a infância, fazem-se adultos leitores”, ressalta a escritora.

 

 Desafios na formação dos novos leitores

 Vontade política é um dos principais instrumentos para incentivar a formação de leitores no Brasil, na opinião de Marina. “Todo mundo sabe o que tem que ser feito. Só na minha casa, estamos falando disso há mais de 40 anos. Há o decálogo da Unesco, há uma bibliografia quilométrica. Porém, é preciso querer. E esse querer se chama vontade política. Fazemos nossos esforços, mas esforços individuais têm alcance limitado, não mudam um país”.

“Para fazer um país leitor, é preciso haver vontade política”, enfatiza a escritora.

 

Inspiração

 A literatura é algo presente desde sempre na vida de Marina, que começou a escrever o primeiro livro entre 1963 e 1964. “Sempre fui leitora voraz, passei por muitas fases na vida. O que continua me inspirando é o todo das minhas leituras, são a forma e o pensamento de tantos escritores poderosos que transformaram em palavras os sentimentos humanos e os transmitiram”, ressaltou Marina.

Nesta edição, a Jornada homenageará quatro grandes nomes da literatura: Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector e Moacyr Scliar. “Ariano Suassuna me encanta pela fusão entre a tradição literária portuguesa e a realidade nordestina; Carlos Drummond é poeta maior; de Clarice, fui jovem admiradora primeiro e editora no Caderno B do Jornal do Brasil depois; com Moacyr Scliar, não tenho maior afinidade, embora o conhecesse e reconheça a qualidade da sua escrita”, comentou a escritora, ressaltando que nenhum deles é inspiração para ela. Sobre isso, esclarece que “nenhum deles é inspiração para mim (nunca fui ‘seguidor’de ninguém).

“A minha inspiração tem raízes internas e fundas, vem de um olhar pessoal sobre o mundo, da soma de duas culturas, de muita experiência de vida”.

 

Prêmio Iberoamericano SM de Literatura Infantil e Juvenil

 Marina Colasanti é a vencedora do 13º Prêmio Iberoamericano SM de Literatura Infantil e Juvenil. O prémio literário é de 28 mil euros e foi criado em 2005 pela Fundación SM (México). A cerimônia de premiação acontecerá no dia 28 de novembro, durante a Feira Internacional do Livro de Guadalajara.

 

Sobre a escritora

Marina Colasanti é poeta, narradora, jornalista e tradutora. Nasceu em Asmara, na Eritréia, viveu em Tripoli, na Líbia, e, com o começo da II Guerra Mundial, a família regressou à Itália. Em 1948, transferiu-se definitivamente para o Brasil.

Com formação em Artes Plásticas, ingressou em jornalismo e durante trinta anos trabalhou em jornais e revistas como redatora, editora e ilustradora. Teve destacada atuação nas questões de gênero, seja por meiodos seus artigos, que resultaram em quatro de seus livros, seja com participação direta como membro do Primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Foi publicitária, muitas vezes premiada. Trabalhou em diversos programas televisivos como âncora, apresentadora e roteirista.

Seu trabalho se destaca pela diversidade. Publicou mais de 50 livros, de contos, crônicas, poesia, ensaios e literatura infantile juvenil. É considerada revitalizadora por excelência dos contos de fadas, reunidos recentemente em seu livro “Mais de 100 Histórias Maravilhosas”. Traduziu para o português importantes obras da literatura universal. É sua própria ilustradora.

Ziraldo conversa com Marina Colasanti, uma das mais premiadas escritoras brasileiras, autora de livros infantis e juvenis, contos, novelas e ensaios. Formada em Belas Artes, ela conta que ilustra a maioria dos seus livros.

 

Jornada Nacional de Literatura

 A 16ª Jornada Nacional de Literatura e a 8ª Jornadinha Nacional de Literatura são promovidas pela Universidade de Passo Fundo (UPF) e pela Prefeitura de Passo Fundo. Os eventos contam com os patrocínios da Ambev, do Banrisul, da Corsan, da Companhia Zaffari & Bourbon, da Fapergs, da Ipiranga, da Panvel, da SulGás, da Triway e da TechDEC; com o apoio cultural da BSBIOS e do Sesi; com patrocínio promocional da Capes, da Italac e da Oniz; com a parceria cultural do Sesc; financiamento do Governo do Estado – Secretaria da Cultura – Pró-cultura RS LIC e realização do Ministério da Cultura.

As inscrições para a Jornada e para a Jornadinha estão abertas e são limitadas. Para a Jornada, o público pode se inscrever tanto para o evento completo quanto para apenas uma das noites. Os interessados devem se inscrever no portal www.upf.br/16jornada. A programação completa também está disponível no site da Jornada. Informações podem ser obtidas pelo e-mail jornada@upf.br ou pelo telefone (54) 3316-8368.

 

 

Marina Colasanti participará da conferência “Por elas: a arte canta a igualdade”, ao lado dos escritores Federico Andahazi e Conceição Evaristo e do integrante do Comitê brasileiro do HeforShe (ElesporElas) Edegar Pretto.

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