E a Mulher, o que ela quer?

Trata-se de compreender as subjetividades para que as mulheres possam construir uma experiência intersubjetiva, como abertura de espaço comum. Daí o não olhar a mulher como um enigma a ser decifrado, mas sem estranheza, com respeito e reconhecimento.

Ter o seu lugar respeitado, sem dominadores e controladores. Ela quer que seus direitos sejam respeitados, independente das crenças e preconceitos. Apenas se sentir livre para buscar seus caminhos, realizar suas escolhas, sem a preocupação de estar sendo motivo de comentários discriminadores e separatistas. Mulher é busca e caminho.

Há na mitologia grega a Fênix, a ave que renasce das cinzas. O simbolismo da lenda entre tantos significados traz a ideia da esperança, nesse renascer contínuo das cinzas, ou num olhar mais contemporâneo, dá-se o fato de novos saberes que surgem a cada renascer e o aprendizado no enfrentamento das adversidades.

Esta simbologia me faz refletir sobre os desafios enfrentados pelas mulheres, nos diversos lugares onde vivem a atuam, na complexidade de suas experiências de morrer e renascer das cinzas. Há momentos em que parecem sucumbir, que a morte se avizinha definitivamente e eis que surgem das cinzas, expressando novas significações a esse morrer e renascer contínuos.

De que estou falando?

É uma luta incessante essa enfrentada pelas mulheres nos seus cotidianos desde os mais cruéis, até os aparentemente civilizados. A mulher busca sua luz, aparece e se oculta, grita e silencia, canta e chora, reza e blasfema, ultrapassando os seus próprios limites. A mulher é resistência.

Sabe sair de cena, retirar-se e voltar com força, tal como as asas da Fênix, que lembra o voo das águias a dominar céus e terras desconhecidas.

Se pesquisarmos as vidas de nossas ancestrais, temos exemplos belíssimos de coragem, de renascimento, de enfrentamento da morte, porque viver é importante para todas as vidas.

A figura feminina do recato e do encanto desaparece diante de uma guerreira, que sabe o que deseja e busca suas metas nos embates mais difíceis, às vezes quase impossíveis. Há situações em que a mulher retorna, parece voltar a ser subjugada pelas cinzas, respira e alça um novo voo, alcança o espaço e busca seus lugares, realizando seus projetos.

Aqui trata-se de compreender as subjetividades para que as mulheres possam construir uma experiência intersubjetiva, como abertura de espaço comum. Daí o não olhar a mulher como um enigma a ser decifrado, mas sem estranheza, com respeito e reconhecimento.

Autora: Cecilia Pires. Também escreveu e publicou no site “Questões e reflexões sobre o corpo feminino”:  www.neipies.com/questoes-e-reflexoes-sobre-o-corpo-feminino/

Edição: A. R.

Como faz bem ouvir, de vez em quando que seja, que nós também somos bons!

É aquietador escutar: “São muitos os homens bons”. “São inúmeras as boas mulheres”. E como faz bem ouvir, de vez em quando que seja, que nós também somos bons.

Procuro contar aos meus alunos os bons modelos e os melhores momentos revelados por médicos atuais e passados – sou professor de relação médico-paciente e de ética médica.

Não é assim que se faz com o futebol? Se priorizássemos a divulgação não dos “melhores momentos”, mas dos piores, continuaria ele sendo o esporte que mais admiramos?

Pesquisadores já fizeram levantamentos – Martin Seligman, Katherine Dahlsgaard, entre outros – sobre quais atributos pessoais consideramos dignos, éticos, formadores de um bom caráter: 1. capacidade de estabelecer relacionamentos honestos, leais e tolerantes; 2. ter boa empatia; 3. gostar, amar as pessoas e a vida; 4. agir de forma construtiva e querer sempre fazer o que é certo; 5. ser inteligente e capaz, sem deixar de ser humilde; 6. revelar senso de dever e de justiça; e 7. ser um otimista e não um crítico.

Admiramos quem tem algumas das qualidades referidas e, igualmente, aqueles que, não as possuindo, revelam vontade de tê-las e se esforçam para tanto.

Melhoramos com os bons exemplos, é lugar comum, mas, para tanto, precisamos que eles cheguem até nós. Quando muito se fala sobre o mal, sobra pouco espaço para o bem. O hábito de muito criticar, de muito apontar os aspectos negativos, gera desesperança e nada mais.

Pergunto: por que os escritores de novelas as povoam com personagens de mau caráter? Não se trata de propaganda às avessas do ser humano? E a propaganda não é a “alma” do negócio?

Evidentemente que não podemos dar uma de ingênuos, negar as maldades das pessoas distantes de nós e até das que nos são próximas. Negar que, como em todas as profissões, na medicina também há médicos que não deveriam ser médicos.

Mas se, ao passar para meus alunos a “novela da medicina”, eu priorizar os exemplos ruins, ao terminar a aula eles – e eu – verão reforçadas nossas próprias maldades, pois o bem e o mal, outro lugar comum, não convivem dentro de nós?

Ao contrário, como é aquietador escutar: “São muitos os homens bons”. “São inúmeras as boas mulheres”. E como faz bem ouvir, de vez em quando que seja, que nós também somos bons.

Autor: Jorge Alberto Salton. Também escreveu e publicou no site “Bruno estava infectado pelo maniqueísmo”: www.neipies.com/bruno-estava-infectado-pelo-maniqueismo/

Edição: A. R.

Velhas lições disfarçadas de Canções Novas

Não defendo o patrulhamento ideológico, seja na escola, na sociedade ou na religião. Mas uma pessoa que é identificada publicamente com a Igreja Católica e tem uma multidão de seguidores, deve perguntar-se pela ortodoxia daquilo que diz e pelo mal que suas posições teóricas e morais podem causar às pessoas e à sua Igreja.

Havia pensado em dedicar as reflexões de março aos temas da ecologia integral e da emergência climática, tão relevantes quanto urgentes. Mas a conferência de um conhecido influenciador católico num programa de TV, no dia 8 de março, rendeu muita conversa durante a semana toda, e eu decidi entrar no debate. Em pleno Dia Internacional da Mulher, o pregador as confinou ao papel de auxiliares do homem.

No último sábado estava casualmente conferindo a programação dos canais de TV e visualizei o início da referida palestra a um público presencial de mais de mil mulheres. Não sei qual era o número de telespectadoras. Não suportei ouvir mais que cinco minutos, mas tive a percepção de que aquilo não acabaria bem. Dito e feito: passamos a semana ouvindo vozes dissonantes sobre o pregador e sua pregação.

A pregação ocorreu num canal que se apresenta católico. O pregador se apresentou em trajes que o identificam com um homem consagrado.

A pregação católica não é reservada a pessoas credenciadas, mas é preciso questionar: ele falou em nome da Igreja Católica Romana? Sua pregação espelha o ensino e a doutrina da Igreja? A canção parece nova e sedutora, mas as lições são velhas e opressoras…

Não defendo o patrulhamento ideológico, seja na escola, na sociedade ou na religião. Mas uma pessoa que é identificada publicamente com a Igreja Católica e tem uma multidão de seguidores, deve perguntar-se pela ortodoxia daquilo que diz e pelo mal que suas posições teóricas e morais podem causar às pessoas e à sua Igreja. Não precisa frequentar academias renomadas; basta consultar o Catecismo da Igreja…

Sua pregação sobre a mulher não tem nada a ver com aquilo que diz o Catecismo da Igreja Católica: “O homem e a mulher foram queridos por Deus em perfeita igualdade enquanto pessoas humanas e no seu respectivo ser de homem e de mulher. São feitos um para o outro: cada um pode ser auxílio para o outro, uma vez que são, ao mesmo tempo, iguais enquanto pessoas e complementares enquanto masculino e feminino” (cf. §§ 369 e 372).

Nada de submissão servil, caro pregador!

E sobre comunismo (contra o qual o pregador se pronuncia amiúde), e o capitalismo (em relação ao qual não vê problemas), a Igreja católica tem posição: rejeita as ideologias associadas ao comunismo, assim como o individualismo e o primado absoluto do capital sobre o trabalho, que caracterizam o capitalismo. E diz que é uma falácia apregoar que a vida econômica deve orientar-se apenas pela lei do mercado, pois ela precisa ser racionalmente regulada em vista o bem comum (cf. § 2425). Portanto, equilíbrio e coerência, sem derrapagens ideológicas, improvisado mestre!

Respeito a fé e a piedade pessoal do jovem e entusiasmado pregador, mas não posso deixar de registrar a profunda desconformidade das suas pregações em relação ao ensino moral à doutrina social da Igreja. Ele precisa de um pouco mais de formação cristã e comunhão com a Igreja e seu ensino. Que a repentina fama não acabe privando-o da humildade e da salutar autocrítica, anulando o bem que poderia fazer.

Autor: Itacir Brassiani, MSF, bispo de Santa Cruz do Sul – RS. Também escreveu e publicou no site “Desarmar o coração e reconstruir a paz”: www.neipies.com/desarmar-o-coracao-e-reconstruir-a-paz/

Edição: A. R.

Tudo o que a escrita precisa é de leitores

Se todas as pessoas entendessem o valor da escrita, talvez houvesse menos dor e sofrimento. Quem é das letras, sabe. Não penso em publicar ou não um livro. Escrevo porque gosto. Sei que vão se esquecer de mim logo após a minha partida.

Uma pessoa que conheço, olhando bem nos meus olhos, disse que eu deveria escrever para mim:

— Para que expor teus sentimentos? Guarda-os para ti ou fala com teu terapeuta — prosseguiu, argumentando que não achava adequado uma profissional como eu falar sobre a própria vida.

Não respondi. Nada a dizer. Pensei bem e achei melhor não me indispor com quem não lida com esse tipo de viver. Agi com naturalidade. Senti que ela desviou o olhar quando a encarei fixamente. Contudo, nem me mexi. Fiquei ali, parada, e o ar começou a ficar pesado.

Nesse instante, virei as costas e saí, dando um tchau meio sem graça.

Apertando os lábios, como é meu costume, disse para mim mesma:

— Não fraqueje, Elenir. A literatura está te salvando.

Fixei meus olhos apenas nos raios de sol do pleno verão em que estávamos. Segui pela rua em silêncio, respirando fundo. Cabisbaixa, andei, andei e andei — pensativa e, ao mesmo tempo, com uma sensação de paz.

Escrever, para mim, já é uma sina. Há uma ideia comum de que psicólogos são imunes a determinadas dores, que devemos saber lidar bem com as perdas. Mas acredito que expor meu sofrimento, a céu aberto, é uma forma de outras pessoas se sentirem acompanhadas em suas dores.

E há sofrimentos que não devem ser comparados à pedra de Drummond, no meio do caminho…

Quando não tenho o que fazer, escrevo.

Mas também escrevo quando minha lista de afazeres está cheia e, de repente, sinto a necessidade de colocar em palavras o que estou sentindo. Não tem jeito: pego logo o caderno de anotações.

Sou adepta de Clarice Lispector. A própria Clarice fazia anotações à mão sempre que sentia vontade de escrever. Para mim, exprimir o que sinto no momento é libertador — um gesto espontâneo que me livra de tantos males.

Ameniza os efeitos desastrosos das vicissitudes da vida. É um meio de catarse, de não se deixar ser devorada por sentimentos que podem trazer dor. Além disso, também serve para desanuviar a mente.

Quero falar tudo o que tenho vontade, ainda mais agora que alcancei a liberdade de escrever sobre qualquer coisa. Basta uma folha em branco à minha frente, e parto para a escrita, sem me preocupar com o gênero do texto.

Meu sentir está no movimento da caneta sobre o papel. Viro o texto para cima e para baixo. Escrevo, paro, guardo. Reviso outro dia.

Assim, penso ter encontrado um salvo-conduto para a possível felicidade ou, ao menos, para o bem-estar. Quero quebrar o silêncio sem me arrepender depois.

Se todas as pessoas entendessem o valor da escrita, talvez houvesse menos dor e sofrimento. Quem é das letras, sabe. Não penso em publicar ou não um livro. Escrevo porque gosto. Sei que vão se esquecer de mim logo após a minha partida.

Então, passei a não deixar de fazer certas coisas por medo do que possam pensar a meu respeito. Não, não se espantem. Não é que eu esteja pensando “nela” agora. Nem gosto de citar o nome — é apenas a realidade. Minha escrita tem sido original e verdadeira para com meus leitores.

Soledade, RS, Janeiro de 2025.

Autora Elenir Souza. Também escreveu e publicou no site “Por que escrevo”?: www.neipies.com/por-que-escrevo/

Edição: A. R.

Os humanoides e a educação que desejamos

A busca por vantagens financeiras ilimitadas que move as instituições privadas contamina gradativamente os gestores da saúde e da educação, sendo submetidos por uma lógica da produtividade na qual as pessoas se desumanizam gradativamente ao serem conduzidas por processos digitais, nos quais o humano está sendo desumanizado ao ser substituído pela tecnologia e se transformando em humanoide.

Um conjunto enorme de pensadores contribuíram e podem ser incluídos como co-responsáveis para as palavras que seguem. Citar alguns, pode significar injustiça com os inominados, por essa razão vou postergar essa tarefa para uma próxima oportunidade.

É amplamente aceito a ideia de que a evolução e qualificação da educação institucional é dependente de uma organização pedagógica que supere a fragmentação e desconexão de informações, apoiada em disciplinas, componentes curriculares, que não dialogam entre si, nem com o mundo da vida.

Como alternativa, para superar os limites dessa organização pedagógica, o conceito de multidisciplina foi substituído pelo conceito de interdisciplina.Vale registar que a transdisciplina se apresenta como ponto de partida e melhor caminho para promover a ligação entre as múltiplas disciplinas com o mundo da vida. 

Feito esse registro conceitual vale evidenciar que a qualificação necessária para a educação, certamente, não será materializada pelo caminho adotado pela mantenedora das escolas estaduais do Rio Grande do Sul, que está criando uma infinidade de novas disciplinas, na qual os sujeitos definidores, protagonistas e construtores das mesmas não são os educadores nem os estudantes.

Retomando o raciocínio dessa reflexão, ressaltamos que o ponto de partida é o fato de que as instituições educacionais, no seu conjunto, parecem desconectadas da própria missão que é contribuir para a evolução humana, que passa pela qualificação das relações dos seres humanos entre si e com a natureza.

Essa desconexão com a própria missão está materializada em números, comprovando que o aumento do tempo na escola não está significando aumento no aprendizado que contribua para a ampliação do pensamento crítico e para a expansão da consciência humana.

Paradoxo semelhante está materializado nos bilhões em recursos públicos investidos em instituições ambulatoriais e hospitalares, que deveriam promover a saúde, pois promovem o adoecimento, se comportando como uma indústria, na qual os doentes são matéria prima para a maior produtividade possível da mesma.

Uma opção para enfrentar esse paradoxo visualizado na educação, que não cumpre a missão de promover o aprendizado em favor da evolução humana, bem como das instituições hospitalares e ambulatoriais que não cumprem a missão de promover a saúde, é explicitar o modelo epistemológico orientador das instituições de ensino, bem como os propósitos que orientam a gestão das políticas públicas de educação e de saúde.

Ao recuperarmos delineamentos elementares da gestão, temos um conceito que, na teoria, é amplamente aceito.  Trata-se do argumento de que nos temas centrais para a sociedade, nos quais se incluem a saúde e a educação, a gestão deve ser pública, pois sendo privatizada e privada, estará submetida ao interesse do lucro. Veja aqui: https://www.youtube.com/shorts/PPWb1gOcpsg

Diante da situação em que os problemas públicos na área da saúde e da educação se avolumam vertiginosamente, cabe questionar as relações entre os interesses privados do lucro, simbolizados na indústria farmacêutica e das instituições digitais que passaram a controlar o currículo escolar e os planos de aula dos educadores.

A busca por vantagens financeiras ilimitadas que move as instituições privadas contamina gradativamente os gestores da saúde e da educação, sendo submetidos por uma lógica da produtividade na qual as pessoas se desumanizam gradativamente ao serem conduzidas por processos digitais, nos quais o humano está sendo desumanizado ao ser substituído pela tecnologia e se transformando em humanoide.


Autor: Israel Kujawa. Também escreveu e publicou no site “A educação na era digital”: www.neipies.com/educacao-na-era-digital/

Edição: A. R.

Sem sons, sem fantasias, ruas vazias e violência!

O Carnaval tem um histórico riquíssimo na Capital gaúcha. Vamos relembrar com alguns detalhes para falar da tristeza que se abateu sobre nós em 2025.

Estamos falando do Carnaval de Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul: sem sons, sem fantasias, ruas vazias e violência. Cidade que já teve a terceira população do país, o Estado que era o terceiro mais rico, que tinha encantadores carnavais de rua e de salão.

Em 1956, Athos Damasceno já nos trazia o vigor das artes e da cultura local, com seu festejado livro: Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no Século XIX.

O Carnaval tem um histórico riquíssimo na capital gaúcha. Vamos relembrar com alguns detalhes para falar da tristeza que se abateu sobre nós em 2025.

Ele é originário do Entrudo, que passou por épocas de liberação e proibição. Por volta do ano de 1870, o Entrudo cai em desuso pelo surgimento das Sociedades (Esmeralda e Venezianos) que mudam e dominam o carnaval até mais ou menos 1900.

Para quem tiver interesse maior é só pesquisar no livro “Fragmentos Históricos do Carnaval de Porto Alegre”.

Acesse aqui: https://cphpoa.wordpress.com/2019/05/06/981/

Era o Carnaval do povão de Porto Alegre, surgido nos bairros pobres como o Areal da Baronesa e Colônia Africana. Eram redutos de população negra.

Eram tempos áureos das brincadeiras. Era nas ruas da periferia e nos salões como se vê na foto de 1930 que as coisas aconteciam.

As transformações

Uma característica do Carnaval de Porto Alegre foram os Blocos Humorísticos.

As Bandas, hoje quase sumidas, tiveram seu apogeu entre os anos 1970 e 1980. Algumas delas foram a DK, Saldanha Marinho, Medianeira, Por Causas de Quê, Área da Baronesa, JB, Filhos da Candinha, Comigo Ninguém Pode, IAPI, etc.…

Até há tentativas de sua volta, como vi com a Banda DK.

 Hoje dia se fala em Muambas, algo muito particular do carnaval de Porto Alegre com ensaios dos blocos e escolas feitos como uma prévia para o desfile oficial.

Os negros tiveram este papel inicial do Carnaval de periferia e rua. Já os nossos povos originários estavam representados por outras etnias nas Tribos – Arachaneses, Os Aymorés, Os Bororós, Os Caetés, Os Charruas, Os Navajos, Os Potiguares, Os Tapajós,

Aqui não vamos nos deter sobre as diferenças de tribos, escolas, como nem analisar o carnaval de rua e de salão, mas temos que salientar nunca fez feito em nada em se tratando de carnaval.

Os desfiles mais famosos eram aqueles da Santana, imaginem a Pepsi era patrocinadora, na Avenida Borges de Medeiros, na Perimetral e na Augusto de Carvalho sempre no Centro da cidade.

Carnaval expulso e jogado ao Porto Seco

Chamam-no de Complexo Cultural Porto Seco, mas não passa de um lugar ermo, com galpões para as escolas, mas sem arquibancadas, com gastos sem fim a cada ano para fazer um evento longe do povo.

O Porto Seco fica a 22 km do Centro. Imaginem o pessoal da Restinga que tem duas escolas de Samba fazendo uma viagem de mais de 50 km.

Os desfiles das escolas de samba no Complexo Cultural do Porto Seco estão marcados para os dias 14 e 15 de março, sexta-feira e sábado. Ou seja, fora dos festejos nacionais do nosso carnaval.

Nem na Cidade Baixa, onde nos últimos anos, surgiram blocos e grupos de carnaval, outros pelo centro e pela Orla, como em outros locais, não tem carnaval, teve violência.

Por uma pressão do Ministério Público, a Prefeitura decidiu proibir qualquer desfile no bairro boêmio da Cidade Baixa em 2025.

Já não bastasse estarmos vivendo a terceira onda de calor de 38° na cidade, veio a violência policial gratuita contra pessoas nas ruas.

Sem qualquer diálogo, não havia desfile, eram pessoas curtindo o seu tempo livre nas calçadas bebendo, é certo que às vezes extrapolando para as ruas.

No entanto, a Brigada Militar que deveria civilizadamente manter a ordem fez ataques com cavalos, cassetes, batendo nas pessoas.

Um espetáculo horroroso para uma cidade que era acostumada a vivenciar suas alegrias.

De nada neste Carnaval se parece com o esplendor de seu passado, das passeatas e das caminhadas, em especial aqueles de milhares de pessoas que vieram para cá em todas as edições do Fórum Social Mundial.

Da alegria da Borges de Medeiros, foto da Memória CP, jornal da capital, ao que podemos ver em seguida, numa foto que recebi de um morador de um prédio. É a violência contra uma mulher.

Tempos sombrios

Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores a esperança” – (Hannah Arendt)

Da famosa filósofa alemã também é a expressão “banalidade do mal”. Eis que neste ano em Porto Alegre adentramos o calor infernal do verão com a violência ímpar do Estado, gratuita, abalando o processo civilizatório.

Sempre se falou da briosa Brigada Militar. Isto é, uma força honrada, digna.

Nos dias de hoje, a semelhança com a PM do Rio e de São Paulo é grande.

Porto Alegre viveu o terror policial na desocupação dos Lanceiros Negros numa fria noite de inverno. E o local não serve para nada desde então, só vejo ratazanas a circular.

Em outubro de 2023, houve um bestial ataque a ocupantes de um espaço na Cidade Baixa. A ordem era: “botem para quebrar, botem tudo abaixo”.

Nos dias de hoje, vídeos são feitos na hora. Tudo se vê, nada ou quase nada se perde. Foi o caso da violência do Carnaval que não existiu em Porto Alegre.

Temo pela Humanidade!

Autor: Adeli Sell é professor, escritor e bacharel em Direito. Também escreveu e publicou no site “Os gaúchos”: www.neipies.com/os-gauchos/

Edição: A. R.

Charlie Brown e Snoopy discutem o Acordo de Paris

Tanto o tragicômico Charlie Brown quanto o sereno Snoopy, na situação posta, podem estar certos. Se engrossarmos correntes negacionistas da mudança do clima, não há dúvida que Charlie Brown está com a razão. Se entendermos que a temática da mudança do clima precisa ser levada a sério e que ações relacionadas com transição energética, menos consumo de combustíveis fósseis e mais de energias limpas/renováveis, paralelamente à construção de capacidade de adaptação ao novo clima global, ainda há esperança para o snoopynianos.

Imagine se, na cena emblemática que Charlie Brown e Snoopy aparecem sentados na beira de um lago, em vez de refletirem sobre a finitude da vida – “Algum dia todos nós iremos morrer, Snoopy!”, assevera um quase fatalista Charlie Brown. Ao qual, um sensato Snoopy se contrapõe com serenidade, “Verdade, mas todos os outros dias não.” – optassem por discutir o aquecimento global e o Acordo de Paris.

Eis que, refazendo, ficticiamente, o diálogo da bem-conhecida passagem das tirinhas de Charles M. Schulz, o mesmo Charlie Brown diria, “Em 2024 ultrapassamos o limite crítico de 1,5 °C, Snoopy! Atingimos o ponto de não retorno. O Acordo de Paris perdeu o sentido.”, e, como réplica, Snoopy assim se manifestaria: “Um ano apenas pode não significar nada, Charlie!” O Acordo de Paris indica o limite crítico de aquecimento de1,5 °C, causado pela atividade humana, como média de um período de 20 anos”. E, então, se, no diálogo original, Snoopy conseguiu angariar mais aplausos e adeptos para a sua filosofia de vida, quem você imagina que, nessa última cena, poderia estar com a razão?

A resposta mais sensata, quem sabe, você poderia encontrar lendo o artigo “A year above 1.5 °C signals that Earth is most probably within the 20-year period that will reach the Paris Agreement limit”, dos pesquisadores Emanuele Bevacqua, Carl-Friedrich Schleussner e Jakob Zscheischler, que são vinculados a Universidades e Institutos de Pesquisa da Alemanha e da Áustria, recentemente publicado na revista Nature Climate Change (disponível em https://doi.org/10.1038/s41558-025-02246-9)

Vamos rememorar que, em 2023, a temperatura média do ar da superfície da Terra atingiu 1,43 °C acima da temperatura de referência do período pré-industrial (1850-1900). Além dos fatores antrópicos, especialmente associados com a elevação da concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera, naquele ano, a presença do fenômeno El Niño, admite-se, contribuiu para tal. E veio 2024, El Niño encerrou o seu ciclo, La Niña se estabeleceu, mas o planeta não esfriou. Pelo contrário, continuou aquecendo.

Até que, em 2024, foi quebrado o recorde de aquecimento, registrando-se 1,55 °C. Enquanto isso, emergências climáticas (secas severas, ondas de calor, incêndios florestais, inundações sem precedentes, furacões e tornados arrasadores, entre outras), se espalharam e continuam se espalhando pelo mundo todo, inclusive entre nós. Nesse começo de 2025, por exemplo, estamos, no Brasil, imersos na quinta onda de calor, podendo seus efeitos adversos serem sentidos em boa parte do País.

O destaque dado no artigo de Emanuele Bevacqua e colaboradores, merecedor de especial atenção, é que, as implicações desta superação, em 2024, da meta dos 1,5 °C de aquecimento, firmada pelo Acordo de Paris (COP21-2015), embora não estando bem-claras (mesmo com as emergências climáticas de toda ordem mundo afora), não devem ser ignoradas.

Todavia, apesar da dúvida razoável posta pelos autores, por outro lado, acendeu o sinal de alerta que, se, de fato, não for implementada uma política radical de mitigação das emissões de gases de efeitos estufa, o ano de 2024 pode se configurar como o primeiro ano acima de 1,5° C dentro do primeiro período de 20 anos com média de aquecimento global de 1,5°C ou superior; frustrando as expectativas/esperanças postas no Acordo de Paris.

Pareceu confuso? Não. A conclusão é muito clara! O ano de 2024, e isso é muito provável, pode ser o marco do início inequívoco da era do aquecimento global de 1,5 °C motivado pela atividade humana. Indica a urgência de que políticas efetivas de cortes de emissões de gases de efeito estufa sejam postas, globalmente, em prática. E, em paralelo, sobressai-se a necessidade de investimentos na construção da capacidade de adaptação a uma nova ordem climática mundial.

Voltando ao diálogo fictício dos personagens peanuts de Charles Schulz, tanto o tragicômico Charlie Brown quanto o sereno Snoopy, na situação posta, podem estar certos. Se aplaudirmos os que negam a adesão ao Acordo de Paris e engrossarmos correntes negacionistas da mudança do clima, não há dúvida que Charlie Brown está com a razão. Mas, por outro lado, se entendermos que a temática da mudança do clima precisa ser levada a sério e que ações relacionadas com transição energética, menos consumo de combustíveis fósseis e mais de energias limpas/renováveis, paralelamente à construção de capacidade de adaptação ao novo clima global, ainda há esperança para o snoopynianos.

Autor: Gilberto Cunha. Também escreveu e publicou no site “O cemitério das almas fracassadas”: www.neipies.com/o-cemiterio-das-almas-fracassadas/

Edição: A. R.

Como viveríamos todos se soubéssemos que temos somente o dia de hoje?

Os médicos se espantavam, pois uma família que poderia estar destruída pela decepção e amargura, o que observavam eram pessoas ligadas e condicionadas ao seu tempo diário, pouco se importando com as consequências trágicas de se considerar somente o agora; como a maioria vive.

Para o Federico era exatamente assim: um dia!  A sua vida por um dia, por somente um; o dia de hoje. Mas ele nem se dava conta. Apenas vivia!

_Não olhe para trás minha Mãe, não importa! Brincava ele, repetindo o que sua Mãe gostava de falar em segredo; esquecendo suas paredes.

Nascera com uma doença raríssima, em que sua mãe imaginava ser ‘A Síndrome de um dia somente.’ Com risos e sorrisos, todos viviam alegres como a condição única de seu filho: a de esquecer tudo o que viviam.

Uma família despedaçada, imaginavam, mas que se fez a mais feliz da cidade!  Isso porque quando se compreende e se aceita disfunções e malfeitos, o que está errado se transforma em grande acerto, e, o que se trinca, o tempo cola.

A rotina da família teve de ser alterada: manhãs, tardes e noites em função do Federico: uma criança maravilhosa, atenciosa e cheia de descobertas. Mas somente pelo dia!  Quando se jogava na cama, dormia com sofreguidão, pois pensava o tempo todo nas maravilhas e novidades que havia conhecido hoje. Sem se importar em numerá-las e não querendo esquecê-las.

Mas na manhã seguinte, antes do amanhecer, tudo seria esquecido.

Em sua vida não havia passado, nenhuma lembrança e em todas as noites, seu cérebro ‘zerava’ quaisquer memórias que pudesse ter. Do que vivera no dia anterior, nada seria lembrado, guardado, armazenado… Nada. Nenhuma lembrança; a não ser o seu nome e o dos seus pais.

Sua mãe, carregava uma culpa escondida.  Parecida com todas as culpas em que as mães carregam, quando seus filhos chegam ao mundo e não são recebidos. Mesmo que nesse caso, seu filho tenha chegado para viver no seu tempo certo. Diferente da noção de tempo, na maneira como o concebemos e vivemos; o ‘Chronos,’ escravizado em nossos relógios. Porque na verdade, o que nos faz pensar como eterno, sempre foi somente o agora.

Para o menino poder se adaptar, seus país mudaram suas vidas. Todas as manhãs, acordavam pelas 3 horas da madrugada, para lhe ensinar o alfabeto e alguns números; na esperança de que um dia as conexões em seu cérebro se completassem.  Como isso nunca acontecia, todos os dias, o seu aprendizado começava pela mesma letra, pelo mesmo nome…

_Meu nome é Maria e sou a sua Mãe, ok? _falava sua mãe.

_Meu nome e José e sou o seu Pai.  Ouvia de seu Pai.

_Sim, isso eu sei. Passei a noite pensando em vocês, mas as demais coisas vão se tornando brancas, límpidas, até desaparecerem; respondia.

 Ao final, vejo somente um véu transparente…que me cobre por inteiro e faz o tempo voltar.  Parece que o relógio enlouquece e os seus ponteiros ficam girando sem parar…

_ Ahh, você fala do relógio na parede?

_Isso mesmo? Vocês falaram que ele é o dono do tempo, não? E eu sonho com relógios.  Sinto que estou dentro deles.

_Mas quem sou eu? Emendava.

_Você é nosso lindo filho, que amamos profundamente.  Vamos começar agora um novo dia. Pronto?

_Mas quem eu sou diante de um novo dia?

_Você é um presente divino, que veio para lembrar a todos nós, que um dia, pode ser longo demais para que nos preocupemos com os outros; os que passaram e os que estão na fila para passar.

Vamos iniciar os seus estudos agora, pois o que importa é o que estamos vivendo em mais um deles. Na verdade, ninguém sabe das razões de estarmos aqui. Com você, estamos aprendendo a esquecer para respirar um dia por vez.

Como Federico era muito inteligente, soltou um grito de espanto e alegria!

_Para tudo! Como você falou a pouco, mãe?

O que é esquecer tudo para respirar?

_É que existe um ontem meu filho e como se não bastasse, existe ainda um amanhã. E nós vivemos a maior parte dos dias pensando em um deles.

Sendo que a maioria das pessoas vive em seu interior, mas extraviadas.

Mas você está livre de tudo, filho, porque você nada lembra do que viveu ontem, e, ainda nada espera pelo próximo dia; porque não há memórias que o forcem a esperar pelo que virá.

_O que virá minha Mãe? 

_Virá sobre nós… Mais do ontem.

_ Agora é que eu não sei de nada…E todos riram.

Começavam com o alfabeto, com matemática, com o nome de sua escola, dos seus irmãos, da sua rua, dos seus professores…

Pelas 8 da manhã, ele sabia letras e alguns números e os encaixava perfeitamente.

Seu café demorava uma hora. Provava com a máxima paciência os pedaços de pães, todas as frutas que estavam sobre a mesa, e, logo após, deliciava-se com um café, demorado, sorvido aos poucos e muito feliz. Encantava-se com o vapor sinuoso que subia de sua xícara. Ficava maravilhado com o seu calor, que aquecia suas mãos e a todos.

Sua Mãe sabia que poderia ser o seu último café, daí que não o apressava nunca.  Para cada coisa na mesa, uma pergunta.  E quando se vestia, então!  Gastavam mais tempo rindo do que se arrumando.

_Olhe, como chama isso?

_É a camisa da escola, Federico, já falei para você ontem.

_Ontem?

Hahaha. Daí lembravam que não adiantava falar, pois à noite, no seu sono mais ralo, como que uma régua, passava sobre sua consciência e apagava o seu dia.

Da mesma forma que não lembrava de ontem, sua admiração pela vida só crescia.  Tudo era lindo, apreciável; tudo era surpresa e alegria. Todos em sua casa aprendiam a rir sobre não lembrar, esquecer, e, sobretudo, não esperar.

Logo que abriam a porta de casa era preciso contê-lo: saia correndo atrás de borboletas, gatos e cachorros; o que via.  Uma bola pela rua era um motivo simples para o seu encantamento. Sorrir e só rir: seu recomeço, seus passos, seu tudo. O êxtase magistral pela vida… Para os que têm somente um dia!

_Corra atrás da bola com vontade Federico! Gritava seu pai.

Como lhe cabia somente hoje, também não conhecia rancor, raiva, decepção ou quaisquer mágoas. Um apelido estúpido? Nada o atingia. Pois a noite apagava toda sua história.  Ao nascer do dia, a vida se renovava, literalmente, sobre sua casa. Apenas o dia valeria a sua vida; nada mais.

A sua inteligência nascia do fato de ter de aprender em todos eles, repetidamente, a ponto de escrever nas paredes do seu quarto o que mais amava.  Mas assim que amanhecia, pendia sobre os seus quadros, uma história que já não importava mais.  Então, recomeçar e reescrever tudo era a sua diversão. De novo, e, de novo.

Sem raiva e sem medos, sem mágoas ou lembranças, a família foi se moldando a um mundo de extrema presença, abandonando de vez os dias que passavam, não esperando nada, nem circunstância alguma que os movesse… Sem o rancor de ontem, sem a ansiedade de amanhã, a energia fluia em sua família com um rio que se esquece de onde partiu.

_Ao dia, o seu próprio mal.  _ repetia sua mãe em voz baixa, dizendo o que escutara de alguém. E continuava:  _ esperar é inútil.  Lembrar, desperdício!

Os médicos se espantavam, pois uma família que poderia estar destruída pela decepção e amargura, o que observavam eram pessoas ligadas e condicionadas ao seu tempo diário, pouco se importando com as consequências trágicas de se considerar somente o agora; como a maioria vive.

Porque do ponto de vista de quem vive hoje, e somente hoje, o amanhã é uma ilusão desnecessária e um perigo para quem passa a vida planejando.  É o fim da aflição!  Sem um amanhã por temer, os tesouros perdem seu valor.

_ Hora de dormir Federico! Gritava sua Mãe.

Porque amanhã tem mais.

_Amanhã? ele questionava. _ você viu o que falou, minha mãe? E todos caíram na gargalhada. Ria, ria muito para o amanhã minha mãe! _ porque eu não sei onde ele estará.

Federico os mudou e os trouxe para uma dimensão mais profunda e complexa do que seus pais poderiam experimentar; o tempo que escorre pelas mãos das famílias e os consome a todos.

Ninguém fala no dia a dia de uma libélula esplendorosa, linda, liberta… Será que todos sabem que ela tem apenas um dia para voar.

Na medida em que seu filho crescia, todos em sua casa, amavam cada vez mais a sua vida e o seu modo intenso de viver e sentir… Somente pelo dia.

Sua mãe, aos poucos, foi quebrando e jogando fora as pequenas estátuas de sal e que passara muitos anos, escondendo e colecionando.

(Resenha do novo livro de NA Zanatta, nome que batizará seus trabalhos a partir de agora, e que trata de reflexões para o público infantojuvenil. O livro que se chamará “Federico por um dia”)

Autor: Nelceu A. Zanatta. Também escreveu e publicou no site “O menino sem rosto da Rua 59”: www.neipies.com/o-menino-sem-rosto-da-rua-59/

Edição: A. R.

Tenho sede de que?

Ter sede de se refazer é uma questão pertinente! Somos água; somos vida.

Meu corpo necessita, indiscutivelmente, de hidratação. Precisamos recompor nossos 70%, constituídos liquifeitas porções moles, de uma estrutura que não espera por momentos certos para se refazer. Ter sede de se refazer é uma questão pertinente!

O estado físico desta necessidade nos remete a compreender em como urge tornar-se permeável a tais reminiscências.

A biologia humana é segura de suas necessidades, porém a química psíquica nem sempre é tão objetiva: vive de sutilezas vis que nos fazem querer, não querer ou requerer estes encantos de sobrevivência. Tal qual e tão intensamente o desejo de usar a água quando ela deixa de estar a mão.

Tomar água sem sede é prevenir a desidratação, embeber-se de livros é hidratar a imaginação. Reservar água em dias muito quentes previne ficar sem, por qualquer acidente. Não deveríamos permitir que negociassem um bem precioso da sociedade, assim evitando o caos da privatização da água.

Até parece delirante e febril divagar em tempos de seca.  Mais delírio ainda é deixar que aumentem o preço em 70%, pois isso me cheira a escravidão. 

Caro leitor, não deixe de embebedar-se de água, livros ou paixão. Seres humanos  hidratados sentem o pulsar do coração. Somos água; somos vida. Lutemos para que nunca nos falte água!

Assista também: Ondas de calor e falta de chuva em Passo Fundo: https://globoplay.globo.com/v/13384313/

Autor: Alexandre Rosa Vieira. Também escreveu e publicou no site “Dezembro chegou”: www.neipies.com/dezembro-chegou/

Edição: A. R.

Autoridade docente na modernidade líquida[1]


Qual o futuro da escola e da docência numa cultura marcadamente consumista? É possível construir processo de autonomia na escola quando esta é invadida pela lógica de mercado? O professor tem diante de si um aluno que se compreende como indivíduo ou como consumidor, alguém que simplesmente obedece ou constrói processos de autonomia?

Modernidade líquida é a metáfora de Bauman (2010) para explicar e compreender a sociedade contemporânea. A modernidade, enquanto projeto, buscou a consolidação de uma sociedade estável, sólida, livre de desgraças e desvios, uma constituição perfeita da organização social. O horizonte moderno não realizado de um progresso linear para tudo, confirma que o projeto não terminou, mas ingressou numa outra fase, definida por Bauman (2010) como modernidade líquida, ou seja,“aquela forma emergente de vida, aquela forma que era moderna de uma maneira radicalmente diferente daquilo que havíamos testemunhado (e que havíamos participado) antes” (Bauman, 2010, p. 12).

Na modernidade líquida (Bauman, 2010), a educação passou a ser compreendida como uma antessala ao mercado de trabalho. Diversos países como explica Nussbaum (2015) tem orientado suas reformas educacionais em todos os níveis para o trabalho e de acordo com as habilidades profissionais, que não são de longo prazo, mas voltadas para a aprendizagem de hábitos para o tempo imediato. Esse fator também está diretamente ligado à descentralização da autoridade docente, haja vista que o professor acostumado a trabalhar numa perspectiva de uma educação para toda a vida depara-se com as exigências do mercado de uma aprendizagem ao longo da vida e que leve a mudanças constantes dos hábitos dos indivíduos. 

Nesse novo cenário educacional àquilo que era tido como “um corpus bem definido e logicamente congruente de destrezas e hábitos adquiridos, com a experiência que só o ‘longo tempo’ poderia fornecer, não é mais visto como vantagem no corrente sistema produtivo” (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p. 66). Isso significa que, os sujeitos precisam estar preparados para a flexibilidade, ou seja, saber abandonar com rapidez hábitos do presente para que haja adaptação imediata aos novos. As novas exigências do mercado, entretanto, colocam em xeque a própria necessidade do docente, pois “a formação profissional a curto prazo, orientada diretamente aos empregos e obtidas nos cursos flexíveis e em equipe de aprendizagens autodidatas, são muito mais atraentes do que a educação à moda antiga” (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p. 67, grifo nosso).

Desse modo, o docente, a escola e a universidade não possuem mais o saber “sagrado” a transmitir, já não são mais infalíveis e, por consequência, a relação com o conhecimento também muda diante dos projetos de caráter flexível e efêmero. Os alunos não devem apegar-se ao conhecimento, e muito menos seguir comportamentos por ele propostos, pois foi transformado em informação, e a velocidade com que as informações chegam e “somem” é enorme.

O próprio conhecimento torna-se descartável, passível de ser jogado fora e substituído. O conhecimento que é traduzido como informação “guarda relação com o hábito de tomar café: só é bom quando forte e quente, esfriando rapidamente antes que seu gosto possa ser saboreado e avaliado por completo” (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p. 68). Mas, o quê assume o lugar do conhecimento? E quem assume o lugar do professor?

Na modernidade líquida os conselheiros que apresentam várias possibilidades de seguir na vida são melhores quistos que o professor preocupado em oferecer uma única opção, já bastante congestionada. Esses conselheiros, na visão do Bauman (2010), sustentados pela sociedade de consumo, apresentam-se com mecanismos de sedução em substituição à repressão de outros tempos mais sólidos. O poder de repressão da escola moderna sólida é substituído pelo da sedução, pelas vias da sociedade de consumo e o docente já não possui tanta força de determinação e nem consegue seduzir. Os conselheiros, segundo Almeida, Gomes e Bracht (2009, p. 69 – grifo dos autores) “em suas interpretações do ‘bem viver’, oferecem àqueles que os procuram o saber fazer, ser ou viver, não ‘o saber’ que os professores da modernidade sólida pretendiam divulgar e eram bons em transmitir, de uma vez por todas, aos seus alunos”. A autoridade docente entra, desse modo, numa crise profunda com todos esses elementos, que provocaram na modernidade líquida o aparecimento de muitas outras fontes de autoridade.

Nesses novos tempos maleáveis e reconfigurados, a escola não é mais o único espaço de aprender e adquirir a cultura ideal e o professor não é mais a única autoridade para ensinar. A aquisição de conhecimentos, habilidades e atitudes está bastante pulverizada, vários agentes da sociedade educam, ensinam, treinam, preparam as pessoas.

Numa ótica de formação enraizada nos vários aspectos da vida humana, seria extremamente saudável que os vários espaços sociais educassem e ensinassem. Por outro lado, corre-se o risco de um relativismo extremo, onde tudo passa a contar como educação, como experiência formativa do ser humano. É por este viés, que Bauman (2010) alerta que os espaços da sociedade líquida, onde a todo o momento se aprende e desaprende, podem estar operando numa lógica mercantil que não necessariamente leve em consideração a complexidade do humano como o centro do processo formativo.

Talvez o ponto nevrálgico apontado por Bauman (2010), com relação à descentralização da autoridade docente, é que, as novas fontes de autoridade estão estreitamente orientadas pela dinâmica do mercado. Na modernidade líquida, o mundo do trabalho, importante espaço de construção da identidade humana e de formação, é substituído pelo artefato do mercado de trabalho “que agora toma a si o papel de juiz, de formulador de opinião, de verificador de valores, […], os intelectuais foram desalojados até na área que por vários séculos parecia constituir seu domínio monopolista de autoridade – a área da cultura em geral” (Bauman, 2010, p. 172). A antiga aliança dos intelectuais com o Estado ordenador, com capacidade de legitimar e universalizar o discurso sobre a verdade, o gosto, passou para o mercado e seu poder legislador de formador de opiniões e valores, bem como de critérios para o bem e para o mal, beleza e feiura, sucesso e fracasso dentre outros. Há de se considerar, entretanto, que no mercado não há um centro de poder único e nem existe a pretensão de criá-lo, pois o que define a hierarquia é a notoriedade e o quanto algo que é pronunciado é notado e seguido por outras pessoas: “falam de mim, logo existo!” (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p.70).

A já desacreditada autoridade docente em conduzir a lógica da aprendizagem, disputa sem muitas chances de vitória, com as sedutoras e atraentes mensagens dos novos famosos, artistas, esportistas, políticos, outsiders, enfim, dos chamados formadores de opinião. É bom recordar que estes atores induzem a formação de opinião, mas não necessariamente a construção e desenvolvimento do conhecimento, que é uma tarefa central do professor. 

Ocorre que, o docente, antes pertencente a um sistema escolar formal rígido e coletivo quanto a sua formação e estrutura, agora está diante da privatização dos processos de formação e sua subordinação ao mercado, ao trabalho e a múltiplas vozes que se auto intitulam autoridades dispostas a educar e tornar as pessoas mais felizes e bem-sucedidas. Tudo isso nos aponta que o slogan “educação para toda a vida” da modernidade sólida está em crise, juntamente com o ideal de autoridade docente gestado na escola moderno-sólida e, emerge assim, uma perspectiva de “educação ao longo da vida”, que em tempos moderno-líquidos exige novas reflexões acerca da autoridade docente. Sobre isso dedicar-se-á o próximo tópico.

Como bem descreveu Bauman (2010), da mesma forma que o discurso intelectual se deslocou da tarefa de legislar para a de interpretar, o discurso formativo da escola passou por consequências inesperadas, pois está frente a um imenso desafio existencial: como oferecer uma aprendizagem para toda a vida se a todo momento são exigidas novas habilidades, conhecimentos e atitudes em uma realidade de constantes transformações, literalmente em estado líquido contínuo? O que expomos até aqui não é nada empolgante para o sistema escolar e para o modelo de autoridade docente tradicional, já que, os conhecimentos são rapidamente desvalorizados e descartados; as biografias pessoais e projeções profissionais para o futuro atravessam profundas incertezas e inseguranças.

As instituições tradicionais como a escola e a universidade passam por lamaçais de precarização pelas reformas sociais e econômicas promovidas pelo mercado, que submetem os indivíduos à lógica do consumo globalizado.

Nesta trilha de problematização, outros questionamentos poderiam ser apresentados: qual o futuro da escola e da docência numa cultura marcadamente consumista? É possível construir processo de autonomia na escola quando esta é invadida pela lógica de mercado? O professor tem diante de si um aluno que se compreende como indivíduo ou como consumidor, alguém que simplesmente obedece ou constrói processos de autonomia? São questionamentos importantes que não podem ficar de fora do atual cenário que os professores encontram no cotidiano escolar. A compreensão conceitual destas problemáticas se torna importante para que nossas ações sejam conscientes e educativas. A educação não se faz com entusiasmo ingênuo ou com doses inflacionadas de otimismo descontextualizado. Processos educativos se fazem com lucidez, conhecimento e consciência da realidade que se apresenta. Tem essa lucidez fará toda diferença.

Para os que desejarem aprofundar a discussão deste texto indico o artigo completo: https://www.researchgate.net/publication/343448167_A_dialetica_entre_a_normatizacao_e_a_interpretacao_a_autoridade_docente_na_modernidade_liquida_de_Bauman

Referências:

ALMEIDA, Felipe Quintão; GOMES, Ivan Marcelo; BRACHT, Valter. Bauman e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica. 2009. 

BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes:sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2010.

FÁVERO, Altair Alberto; CENTENARO, Junior Bufon. A autoridade docente na modernidade líquida. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro (orgs.). Leituras sobre Zygmunt Bauman e a Educação. Curitiba: CRV, 2019, p.81-99.

FÁVERO, Altair Alberto; CENTENARO, Junior Bufon. Dialética entre a normatização e a interpretação: a autoridade docente na modernidade líquida de Bauman. Educação em Questão, v.57, n.52, abr./jun., 2029. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/15883

[1] Uma versão modificada deste texto foi publicada como parte de um artigo de Fávero e Centenaro (2029) que saiu na  e também em partes de uma artigo publicado na Revista Educação em Questão.

Autor: Altair Alberto Fávero – altairfavero@gmail.com Professor e Pesquisador do PPGEdu UPF. Este é a sua octagésima publicação no site. Também escreveu e publicou “Educação contra barbárie”: www.neipies.com/educacao-contra-a-barbarie/

Edição: A. R.

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