A formação da autonomia discente e o papel da autoridade docente

Os professores necessitam de espaço e tempo para que possam exercer sua docência de forma reflexiva e investigativa tendo em vista o aperfeiçoamento constante de sua própria prática. Isso vai na contramão das reformas trabalhistas, orientadas sobretudo pelos interesses empresariais, que estão em curso e que reduzem direitos e fragilizam o trabalho docente.

Há quinze anos atrás publiquei com minha grande parceira de pesquisa Carina Tonieto (na época minha orientanda de mestrado no PPGEdu/UPF), o livro autoral Educar o Educador: reflexões sobre formação docente (Fávero e Tonieto (2010). 

Na apresentação do livro ressaltamos que a formação docente tomada como objeto de investigação originou “uma diversidade de teorias e práticas pedagógicas cujas preocupações geram uma pluralidade de concepções que valorizam a experiência vivida dos profissionais da educação”. Essa pluralidade de concepções espelha o cenário dos grandes desafios para pensar a relação pedagógica entre professor e aluno e como se dá a relação tensional entre formação da autonomia discente e a autoridade docente.

O termo “tensionamento” tem a clara intenção de indicar que a relação entre autonomia discente e autoridade docente não se dá de forma passiva ou espontânea, mas constitui-se de uma mediação dialógica que pode ou não ocorrer na experiência formativa da escola.

Conforme expressa com lucidez o pesquisador Yves de La Taille (1999, p. 10) “diz-se de alguém que tem autoridade quando seus enunciados e suas ordens são considerados legítimos por parte de quem ouve e obedece”. Nem todo ato de obediência é derivado de uma relação de autoridade, pois há situações (por exemplo num regime ditatorial) que a obediência se dá por medo e não por considerar legítimo quem nos dá ordens. Algo diferente ocorre quando estamos diante de uma autoridade legítima, democraticamente instituída. Neste caso, a autoridade é legítima porque suas ordens não são obedecidas por medo ou por coação, mas por respeito e por saber que o seu cumprimento pode produzir melhorias e crescimento.

A relação entre professor e aluno pode ser um exemplo deste tipo de autoridade. O professor tem autoridade legítima sobre seus alunos quando suas ordens ou condução pedagógica das atividades tem por finalidade a aprendizagem e a formação dos alunos. Mas como pensar essa relação num cenário marcado por complexidades, fanatismos, ideologias conflitantes, negacionismos, autoritarismos, confusões conceituais e crises de autoridade? Que desafios precisam ser enfrentados para que a autonomia discente não seja confundida com anarquia irresponsável e a autoridade docente não seja confundida com autoritarismo castrador e promotor de medo e insegurança? As escolas podem espaços da construção de tempos e espaços de construir processos de autonomia discente?  Qual o papel da autoridade docente neste processo? Na sequência deste escrito apresento três aspectos fundamentais para enfrentar minimamente estes questionamentos.

  1. A escola como espaço flexível para construir processos de autonomia

Torna-se cada vez mais notório que os processos educacionais estão sendo orientados para atender as demandas do mercado. A advertência de Nussbaum (2015, p. 4) é contundente quando alerta que “os países logo estarão produzindo gerações de máquinas lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios”.

As instituições escolares estão se moldando à lógica de mercado e admitindo que se não acompanharem o “andar da carruagem” perderão espaço, importância e sua função. Esse desespero mercadológico, chamado por Bauman (2008) de “tornar a necessidade virtude”, leva os formuladores das políticas educacionais e os intelectuais, a aderirem ao jogo da oferta e da procura, no qual “os intelectuais, coletivamente degradados pela competição do mercado, convertem-se em promotores zelosos de critérios de mercado na vida universitária” e os critérios de avaliação de cursos, projetos e títulos passam a ser  “uma boa abertura para o mercado, se vende bem – e a capacidade de vender (‘encontrar-se com a demanda’, ‘satisfazer as necessidades do potencial humano’, ‘oferecer os serviços que a indústria demanda’)” (Bauman, 2008, p. 173 – grifos do autor).

Tais constatações estendem-se para a educação básica, onde se voltam muitos projetos de reformas educacionais inspiradas pelas demandas e necessidades do mercado e da indústria, as quais são legítimas enquanto espaço de produção de bens e serviços, mas ilegítimas como projeto único de formação humana.

O perigo está em tornar as instituições escolares e as próprias universidades em meros complementos das demandas de treinamento, para garantir as necessidades do mercado, já que tal proposta não dá conta da complexidade e das necessidades da formação humana e pode se agravar se tais espaços formativos não assumirem direção de seu próprio processo (Tonieto; Fávero; Silva, 2022).

Não se trata de resgatar o ideal legislador da modernidade sólida em que escola era a principal responsável para formular o tecido social, mas dizer que a escola deve assumir a responsabilidade de definir a direção do seu próprio percurso é defender a posição que há questões além daquelas exigidas pelo mercado, que não podem sair do horizonte formativo dos seres humanos. É nesse sentido que a formação para a autonomia de sujeitos críticos constitui uma tarefa imprescindível da escola, ao mesmo tempo que necessita ser suficientemente flexível para reconhecer que em tempos-líquidos, as vozes e autoridades podem vir de vários lugares.

Na transição da modernidade sólida para a líquida, os espaços não formais de aprendizagem acentuaram-se consideravelmente, conforme vimos anteriormente. Inevitavelmente a educação formal “não pode mais deixá-los de lado, já que marcam cada vez mais o comportamento, o hábito e, em última instância, as influências extrainstitucionais no processo de socialização” (Flickinger, 2009, p. 77). Por isso, a flexibilidade é ponto decisivo para as instituições da educação formal, desde que seja com autonomia.

O sujeito da modernidade líquida muda num tempo mais curto daquele necessário para consolidar hábitos, rotinas e formas de agir (Bauman, 2007, p. 7), e a escola, tendo-o à sua frente, deve exercer seu papel de educar nessa transitoriedade de momentos e experiências que ele vive. Bauman recupera uma tese de Rorty (1999 apud Bauman, 2007, p. 21), que “definiu como objetivos desejáveis e realizáveis dos professores, as tarefas de agitar os garotos e instigar dúvidas nos alunos sobre as imagens que eles têm da sociedade a qual pertencem”. Isso pode significar preparar os alunos para a vida líquida, para a era da incerteza, mas sobretudo instigá-los a duvidar da imagem que possuem de si próprios e da sociedade em que vivem, superando consensos forçados, verdades imutáveis, e a própria lógica do consumo, que atrai as vidas.

Em síntese, a docência na modernidade líquida é flexível e autônoma por não decretar o que é certo e verdadeiro, mas por ajudar os educandos a encarar com sobriedade e reflexão o mundo cambiável em que se vive.

            b) A autoridade docente emana da reflexão e da investigação

A modernidade líquida, ao desestabilizar os conhecimentos imutáveis, colocou em crise a autoridade docente que tinha o poder de transmitir tais conhecimentos que perdurariam por todo o sempre. A negação desta lógica moderno-sólida e a insurgência de uma aprendizagem ao longo da vida, na modernidade líquida, pode nos levar a encontrar elementos positivos das condições líquido-modernas.

Para Flickinger (2009, p. 68), a reorganização e deslocamento dos lugares da produção do saber para além das instituições tradicionais, “representam apenas algumas consequências de um processo econômico-social que não se satisfaz mais com um determinado estoque de conhecimentos disponíveis”.  A nova noção de aprendizagem tem como pauta “romper com a regularidade, flexível o bastante a ponto de permitir libertar-se de velhos hábitos e com uma enorme capacidade de reorganizar experiências episódicas e fragmentárias em pautas anteriormente pouco familiares” (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p. 71). Embora seja paradoxal, a regularidade é não haver regularidade ou continuidade.

Diante disso, pressupõe-se que os processos formativos não estão mais completamente dados a priori, instaurados de forma definitiva nas instituições tradicionais, mas envolvidos numa trama bastante complexa e permeável pelas condições dos tempos líquidos da contemporaneidade. Isso significa que a docência precisa fazer as pazes com a incerteza diariamente fabricada e com a ambiguidade, além dos diversos pontos de vista e a inexistência de autoridades infalíveis e seguras (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p. 71).

Fazer as pazes com a incerteza não significa abrir mão de elementos duradouros e essenciais para a formação humana em nome de um relativismo extremado, sem direção, mas reconhecer que este ambiente de pouca estabilidade pode promover um processo reflexivo permanente.

Algo de instigante que nos aparece nesses tempos cambiáveis é que “no lugar de conhecimentos objetivos e de habilidades instrumentais exige-se uma competência reflexiva”, de questionar as certezas antes construídas e de redefinir, sempre de novo, o papel supostamente estável” (Flickinger, 2009, p. 68). Na sociedade de produtores e consumidores, a ambivalência entre ser e parecer ser dificulta que os indivíduos se voltem para si mesmos, ampliado o desafio docente para o exercício da reflexão, como base da formação.

O segundo desafio, consiste então, em compreender a docência na modernidade líquida em vias de reflexão e investigação, ou seja, conceber o professor como um agente reflexivo e investigativo.

Trata-se de conceber os professores como aqueles que assumem uma autoridade dentro daquilo que Bauman (2010) definiu como interpretação. Interpretar é a marca do trabalho intelectual e profissional do professor da modernidade líquida, que necessita superar em grande medida a autoridade verticalista do professor com relação a “massa” de aprendizes. Além de ser um sujeito que compreende, também torna-se autor de sua própria prática pedagógica, na medida em que investiga seu próprio fazer e se torna capaz de pensar a educação e não somente reproduzir e aplicar mecanicamente ações planejadas por outros. Segundo Almeida, Gomes e Bracht (2009, p. 89), tal visão “representa um duro golpe nas pretensões proselitistas ainda existentes no campo educacional, que continuam a insistir na posse da verdade e, por consequência, da prática educativa que, inexoravelmente levaria até ela”.

Criar possibilidades para o “professor reflexivo” tem desafiado enormemente os condutores de processos de formação docente inicial e continuada, num cenário de precarização das relações de trabalho no campo educacional. Professores com acúmulo de contratos, excessiva carga horária, baixos salários, precárias condições estruturais das instituições de ensino, amedrontados pelas ações de controle de seu pensamento e de sua ação e diferentes formas e violência estão visivelmente desesperançados com relação às possíveis melhorias num futuro próximo.

Leia também: www.neipies.com/ser-professor-reflexivo/

Os professores necessitam de espaço e tempo para que possam exercer sua docência de forma reflexiva e investigativa tendo em vista o aperfeiçoamento constante de sua própria prática. Isso vai na contramão das reformas trabalhistas, orientadas sobretudo pelos interesses empresariais, que estão em curso e que reduzem direitos e fragilizam o trabalho docente. Por isso, as instituições educacionais, os gestores da educação pública e privada, se almejam profissionais reflexivos, investigativos e qualificados deverão fazer resistência à mercantilização da educação. Caso contrário, a profissão docente se tornará apenas um “bico”, e sendo assim, os rumos da educação nessas condições não serão muito promissores.

c) A escola como espaço de discussão e promoção da justiça social

Observamos que a escola da modernidade sólida era seletiva, eletista e classificatória. Não era uma escola para todos e ficou marcada por excluir grupos que não estivessem de acordo com o perfil estabelecido. Pobres, deficientes físicos, pessoas com transtornos mentais, negros, homossexuais, doentes tornaram-se como que “ervas daninhas” que precisavam ser eliminadas do jardim civilizatório (Bauman, 2010).

Com a escola líquida-moderna, a ambivalência, a diferença, os anteriormente excluídos, poderiam ter seu espaço, pois, a vida passou a ser compreendida de modo mais plural. As instituições educacionais passaram a ter papel importante na busca por justiça social e superação de desigualdades sociais, econômicas, de gênero e acesso aos direitos básicos. Contudo, a escola dos tempos líquido-modernos ainda não conseguiu se efetivar de fato como um lugar de educação para todos e um espaço de superação da injustiça. Continuamos tendo uma escola excludente, classificatória, dual, discriminatória, de dominação branda.

Para Bauman (2010, p. 227), “o novo modo de dominação se distingue pela substituição da repressão pela sedução, do policiamento pelas relações públicas, da autoridade pela propaganda, da imposição da norma pela criação de necessidades”. A ligação dos indivíduos à sociedade se dá pela capacidade de consumo, portanto, é o mercado quem assume as rédeas do controle dos projetos de vida e, por consequência, o poder de excluir e incluir está em suas mãos. Os que não conseguem acompanhar o fluxo das necessidades criadas por esse novo agente de controle, tornam-se os novos reprimidos (Bauman, 2010, p. 230).

A marginalização e a pobreza da contemporaneidade líquida em última análise, parece ser produto da emancipação do capital em relação ao trabalho, já que “hoje o capital não emprega o restante da sociedade no papel de trabalho produtivo” e o “número de pessoas que ele de fato assim emprega torna-se cada vez menor e menos significante” (Bauman, 2010, p. 243). O capital, de outro lado, emprega as pessoas como consumidoras, não mais em função do trabalho estritamente, isto é, as novas massas de pobres aumentam pelo mundo todo, vítimas da não inclusão no emprego do consumo, os quais são os refugos humanos, na linguagem baumaniana.

Inevitavelmente, o trabalho docente na modernidade líquida não pode ignorar a discussão e a busca por justiça social, assim como a formação ética dos sujeitos. A promessa da autenticidade individual, ou autonomia, tão bem defendida pelo iluminismo é dissipada pela “privatização crescente das preocupações individuais” e pela “diminuição na participação em assuntos públicos” (Bauman, 2010, p. 258). A precarização do público, do espaço de relação entre os seres humanos, enquanto membros de uma mesma nação, comunidade ou grupo, acarreta profundas injustiças e desigualdades.

Talvez uma das tarefas intransferíveis dos docentes diante desse contexto é oportunizar aos alunos processos formativos que os tornem conscientes da massiva carga de mercadorização imposta ao sistema educacional.

A velha pretensão instrumental de educar somente para o mercado de trabalho não se sustenta, pois o educando não irá somente trabalhar ou consumir; ele terá uma teia vital bastante complexa e multidimensional para lidar. Por isso, as escolas precisam “prover meios adequados a fins orientados para a pessoa” e no processo educativo “expor as limitações da razão instrumental, restaurando a autonomia da comunicação humana e a criação de significados orientados pela razão prática” (Bauman, 2010, p. 259).

Trata-se de retomar o projeto de autonomia iluminista em contextos líquido-modernos, de voltar a colocar o ser humano no centro do processo formativo, de ressignificar a autoridade docente e da escola, para a emancipação dos sujeitos. Em outras palavras, o projeto moderno está inconcluso, e cabe aos docentes, intelectuais e instituições formativas levá-lo a sua realização.

Considerações finais

A docência continua sendo essencial para os processos educacionais, embora se encontre muito ameaçada e pouco valorizada enquanto profissão. A autoridade docente, na modernidade líquida, possui suas especificidades e desafios numa dialética entre o ofício de normatizar (oferecer conhecimentos basilares e direcionar um processo formativo) e o de interpretar (compreender as relações cambiáveis, diferenças culturais, novos hábitos).

Numa perspectiva baumaniana está posta uma complexa relação entre elementos dos tempos sólidos e dos tempos líquidos, ou seja, uma permanente ambivalência, de coexistência de elementos dissonantes num mesmo espaço e tempo. Os professores continuam sendo protagonistas na retomada do projeto moderno de autonomia centrado no ser humano, que se encontra inacabado em virtude das intenções proselitistas do mercado. A modernidade sólida falhou ao optar pela repressão em vez da autonomia dos indivíduos; a modernidade líquida falha ao optar por consumidores em vez de sujeitos reflexivos.

Segundo a abordagem de Freire (2000, p. 51), considera-se que é importante e imprescindível estabelecer uma consciência coletiva de que nenhuma formação e ação docente responsáveis socialmente podem constituir-se apartadas “do exercício da criticidade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica”, assim como é salutar para a promoção de uma pedagogia da autonomia “o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição”.

Defende-se, desse modo, que a escola continua sendo indispensável para a promoção de experiência pedagógica voltada para a emancipação humana em tempos líquido-modernos. Para tanto, apontam-se algumas perspectivas a partir das exigências e possibilidades postas pela pedagogia da autonomia freireana e pela compreensão das relações humanas num cenário marcado pela liquidez.

A valorização da carreira docente, a garantia de condições adequadas de trabalho e a aposta em projetos educativos formativos são elementos fundamentais para o fortalecimento e construção da docência, já que somente discursos empolgados em favor da educação e de responsabilização dos docentes pouco ou nada contribuem  para a constituição de ambientes escolares promotores de experiência educativas emancipadoras e que acolham e atendam os interesses juvenis e as necessidades inerentes ao trabalho docente (Fávero; Centenaro; Santos, 2023; Tonieto; Bellenzier; Bukowski, 2023; Fávero; Tonieto; Bellenzier; Bukowski; Consaltér; Centenaro, 2022; Bellenzier; Guerra; Fávero, 2021).

Desse modo, as possibilidades de construção de uma relação harmoniosa entre autonomia discente e autoridade docente no contexto líquido-moderno estão marcadas por um contexto político-pedagógico adverso que, por um lado, desafia os sujeitos envolvidos nas decisões educacionais e, por outro, reforça a necessidade de relações pedagógicas construtivas que contribuam para a formação humana levando em consideração a liquidez das relações humanas e sociais.

Para os que tiverem interesse em acessar o livro completo Educar o Educador: reflexões sobre formação docente, referido no início deste escrito, segue o link de acesso: https://www.researchgate.net/publication/355339078_Educar_o_educador_-_reflexoes_sobre_a_formacao_docente

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes:sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2010.

BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2007.

BAUMAN, Zygmunt. Sociedade Individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Trad. José Gradel.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2008.

BELLENZIER, Caroline Simon; GUERRA, Simone Zanatta; FÁVERO, Altair Alberto. A docência universitária e as juventudes: implicações das relações pedagógicas em uma perspectiva humanizadora. In: OLIVEIRA, Victor Hugo Nedel; CASTILHLO, Rosane (orgs.). Juventudes brasileiras: Questões contemporâneas. Parnaíba/PI: Acadêmica Editoria, 2021, p.105-126.

FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina. Educar o educador: reflexões sobre formação docente. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

FÁVERO, Altair Alberto; CENTENARO, Junior Bufon. A autoridade docente na modernidade líquida. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro (orgs.). Leituras sobre Zygmunt Bauman e a Educação. Curitiba: CRV, 2019, p.81-99.

FÁVERO, Altair Alberto; CENTENARO, Junior Bufon; SANTOS, Antonio Pereira dos. A liberdade de escolha no Novo Ensino Médio: a percepção de gestores escolares quanto à proposta de flexibilização curricular. Revista Espaço Pedagógico, Passo Fundo, v. 30, p. e14414, 2023. Disponível em: <https://doi.org/10.5335/rep.v30i1.14414>. Acesso em: 27 fev, 2025.

FÁVERO, Altair Alberto Fávero; TONIETO, Carina; BELLENZIER, Caroline Simon; BUKOWSKI, Chaiane; CONSÁLTER, Evandro; CENTENARO, Junior Bufon. O protagonismo dos estudantes na reforma do ensino médio: de que protagonismo estamos falando? In: KÖRBES, Clecí; FERREIRA, Eliza Bartolozzi; SILVA, Monica Ribeiro da; BARBOSA, Renata Peres.  (Orgs.). Ensino médio em pesquisa. Curitiba: CRV, 2022. p. 215-228

FLICKINGER, Hans Georg. A dinâmica do conceito de formação (bildung) na atualidade. In: CENCI et al. Sobre filosofia e educação:racionalidade, diversidade e formação pedagógica. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 52 ed. São Paulo: Paz & Terra, 2015.

LA TAILLE, Yves, Autoridade na escola. In: AQUINO, Julio Groppa (org.). Autoridade e autonomia. 4 ed. São Paulo: Summus, 1999, p.9-29.

NUSSBAUM, Martha C. Sem fins lucrativos:porque a democracia precisa das humanidades. Trad. Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.

TONIETO, Carina; FÁVERO, Altair Alberto; SILVA, Diocélia Moura da. A magia das competências na educação básica. FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro; CENTENARO, Junior Bufon. (Org.). Leituras sobre a pesquisa em política educacional e a teoria da atuação. Chapecó: Livrologia, 2022. p. 137-156.

TONIETO, Carina; BELLENZIER, Caroline Simon; BUKOWSKI, Chaiane. As concepções dos estudantes em relação ao protagonismo juvenil no Novo Ensino Médio. Revista Espaço Pedagógico, Passo Fundo, v. 30, p. e14398, 2023. Disponível em:

<https://doi.org/10.5335/rep.v30i1.14398>. Acesso em: 27 fev. 2025.

Autor: Altair Alberto Fáveroaltairfavero@gmail.com Professor e pesquisador do Gepes/PPGEdu/UPF. Também escreveu e publicou no site “A construção de uma pedagogia da autonomia”: www.neipies.com/a-construcao-de-uma-pedagogia-da-autonomia/

Edição: A. R.

Para que serve a universidade?

Apesar do cenário dominado pelas gigantes do ensino privado, o acesso à universidade pública vem crescendo cada vez mais devido às políticas públicas como o ProUni.

A universidade não é uma rede informacional, nem um supermercado intelectual, sentencia o ensaísta Mikhail Epstein em seu manifesto sobre as humanidades. Professor de teoria cultural e literária russa, ele defende um ensino universitário que seja transformador: “para educar humanos por humanos para uma humanidade melhor”.

Considerando que a expansão do ensino superior no país segue a lógica dos grandes grupos econômicos de educação, precisamos nos questionar: para que e a quem serve o ensino superior no Brasil?

Segunda nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Art. 43 da LDB/1996) a educação superior tem por finalidade “estimular o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; (…) incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura”, objetivando, desse modo, “desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive”.

Porém, conforme o Censo do IBGE 2022 sobre a educação divulgado dia 26 de fevereiro e de acordo com o Censo da Educação Superior de 2023 (Inep/MEC) nosso ensino superior no Brasil cresce sob uma forte lógica de mercado, ofertado por empresas com fins lucrativos, é virtual (EaD), disfuncional, desordenada, elitista, concentrado em estados e cidades ricas, acessado predominante por brancos.

Após 15 anos sem informações atualizadas, aas informações do Censo da educação permitem uma análise sobre a condição que a educação se encontra e precisa orientar o planejamento dos planos educacionais para a próxima década e a formulação de políticas públicas educacionais mais sólidas e referenciadas.

Segundo este Censo de 2022 é possível perceber uma expansão expressiva da oferta em todos os níveis e modalidades nas últimas duas décadas do presente século (2000-2022). Porém, é necessária uma análise mais ampla e profunda sobre a natureza e a qualidade dessa expansão, bem como os desafios gigantescos que ainda se apresentam ao Brasil em matéria de universalização da educação e da ciência com qualidade social.

De 2000 a 2022, na população do país com 25 anos ou mais de idade, a proporção dos que tinham nível superior completo cresceu 2,7 vezes: de 6,8% para 18,4%. Analisando os resultados, é possível perceber que o aumento da proporção de pessoas com nível superior ocorreu para todos os grupos de cor ou raça.

O percentual é 18,4% configura-se ainda como uma oferta elitista, pois menos de um quinto da população acessa a formação superior. Enquanto isto, a título de referência, a escolaridade nesta faixa etária é de 67% na Coreia do Sul, 58% no Canadá, 48% no Japão e 40% no Reino Unido. Na Amárica Latina estamos abaixo da Argentina, Colômbia e Chile. Em todos estes países, a escolaridade geral da população é ainda bem mais elevada.

IES e matrículas

O Censo da Educação de 2023 (Inep/MEC) registrou a existência de 2.580 Instituições de Educação Superior (IES) no país. Dessas, 87,8% (2.264) eram privadas e 12,2% (316), públicas. De 2.580 IES, 1.941 são Faculdades, 393 Centros Universitários e, apenas 205 Universidades. As Faculdades e Centros Universitários não são obrigados a realizarem pesquisas nem ações de extensão com as comunidades e a sociedade.

Nesse contexto, a rede privada ofertou 95,9% (23.681.916) das mais de 24,6 milhões de vagas. Já a rede pública foi responsável por 4,1% (1.005.214) das ofertas, com 65,5% (658.273) dessas vagas em instituições federais. Na modalidade de Educação à Distância (EaD), a oferta de vagas foi de 77,2% (19.181.871); já as presenciais representaram 22,8% (5.505.259). As instituições privadas concentraram a maioria dos matriculados: 79,3% (7.907.652). Já as instituições públicas registraram 20,7% (2.069.130) das matrículas.

O pesquisador José Marcelino Pinto (USP) alerta que o ensino superior no Brasil cresce sob uma forte lógica de mercado. “Na verdade, é um sistema disfuncional, porque ele cresceu na lógica do mercado, não na lógica da necessidade do país”, diz o pesquisador.

É uma lógica e um movimento que assusta e coloca na frente dos estudantes uma mercadoria, que nem sempre está atrelada à qualidade ou a possibilidades futuras a esses estudantes, muito menos propósitos de vida e um projeto de país.

Natureza dos maiores cursos

O Censo do IBGE identificou a predominância e cursos nas áreas de Gestão e Administração, Direito, Formação Professores e área da Saúde com maior número de graduados no Brasil: Gestão e administração (4.073.666), Formação de professores sem áreas específicas (3.108.277), Direito (2.467.521), Promoção, prevenção, terapia e reabilitação (1.370.508), Contabilidade e tributação (1.143.621), Enfermagem (898.464), Letras (887.873), Psicologia (597.731), Medicina (553.538) e Engenharia Civil e Construção (518.252).

Em 2022, o Brasil tinha 2.467.521 pessoas graduadas na área do Direito e, apenas, 553.538 pessoas graduadas na área de Medicina. Em 2022, havia uma pessoa com curso de graduação concluído em medicina para cada 186,9 moradores do Distrito Federal. Já no Maranhão, havia 921,7 moradores para cada pessoa com curso de graduação concluído em medicina.

A distribuição da população com nível superior completo por cor ou raça difere bastante entre as diferentes áreas detalhadas dos cursos de graduação concluídos. Entre as pessoas com graduação concluída na área de “Medicina”, por exemplo, 75,5% eram da cor ou raça branca.

No fomento da pesquisa, pretos e pardos ainda são minoria entre bolsistas de produtividade do CNPq no Brasil. De 2013 a 2023, quando observada a cor autodeclarada pelos bolsistas, praticamente não houve mudanças. Em 2013, por exemplo, os brancos eram 72% dos pesquisadores cujo pedido de bolsa foi atendido. Em 2023, último ano para o qual há dados do CNPq disponíveis, eles eram 70%. Pardos, por sua vez, passaram de 8% para 10% e pretos, de 1% para 2%, também comparando o mesmo período.

Mulheres no serviço social e enfermagem

A área de Serviço Social tinha a maior participação feminina, considerando-se as 40 áreas detalhadas com maior ocorrência. Em 2022, 93,0% das pessoas com curso de graduação concluído em “Serviço Social” eram mulheres.

As mulheres registravam, também, participação expressiva entre as pessoas com cursos de graduação concluído em áreas como “Enfermagem” (86,3%) e “Formação de professores sem áreas específicas” (92,8%). No polo oposto, apenas 7,4% das pessoas com curso de graduação concluído na de “Engenharia Mecânica e Metalurgia” eram mulheres.

Diversidade, políticas de quotas e inclusão  

Em 2022, a instrução das mulheres com 25 anos ou mais de idade superava a dos homens. Entre elas, 20,7% tinham nível superior completo. Entre eles, essa proporção era de 15,8%

Em 2000, a proporção da população branca com 25 anos ou mais que tinha nível superior (9,9%) era mais de quatro vezes superior ao verificado na população de cor ou raça parda (2,4%) e preta (2,1%).

De 2000 para 2022, essas proporções se elevaram 2,6 vezes para a população branca (25,8%), 5,2 vezes para as pessoas de cor ou raça parda (12,3%) e 5,8 vezes para a população preta (11,7%). Trata-se de uma inclusão e expansão tímida a exclusão racial histórica e estrutural brasileira.

Educação básica

De 2000 a 2022, a frequência escolar cresceu nos grupos etários até os 17 anos. Para as crianças de 0 a 3 anos, a taxa de frequência escolar bruta saltou de 9,4% para 33,9%. Na faixa de 4 a 5 anos, a frequência subiu de 51,4% para 86,7%. No grupo de 6 a 14 anos, próximo da universalização, a taxa foi dos 93,1% aos 98,3%. Na faixa de 15 a 17 anos, a frequência subiu de 77,4% para 85,3%.

O único grupo com recuo na frequência escolar foi o dos 18 aos 24 anos: 31,3% em 2000 e 27,7% em 2022, devido à redução da parcela desses jovens no ensino médio ou em níveis anteriores. Mesmo com várias reformas no ensino médio neste período de duas décadas, talvez inclusive devido a elas, mais de um quarto (26,7%) dos jovens brasileiros de 15 a 17 anos que frequentam a escola estão matriculados no ensino fundamental, ou seja, tem atraso na trajetória escolar. A qualidade e a conclusão do ensino médio continua sendo o maior desafio da educação brasileira neste século 21.

Refletindo sobre estes dados do IBGE e nos referenciando em estudos como de José Marcelino Pinto (2024) e Fávero, Consaltér e Tonieto (2020), constata-se que a expansão da Educação Superior está mais associada ao crescimento de um mercado das IES com fins lucrativos do que efetivamente à oferta de acesso e qualidade da formação em nível superior.

Neste setor privado a disputa por alunos, o grande número de matrículas na modalidade à distância, a baixa qualidade da formação dos egressos e o reduzido quadro de docentes, confirmam a máxima do mundo empresarial: “fazer mais com menos”.

Nesta perspectiva, o censo do IBGE evidencia uma expansão disfuncional, desorganizada, sem planejamento nacional e regional, com oferta predominantemente mercantil, concentrada nos estados e cidades mais ricas, para população branca de classe média e alta, com formação concentrada em poucas áreas, como: gestão, administração e direito.

As necessidades do Brasil e de suas diversas regiões, o sonho de milhões de estudantes, a promoção da cultura, da ciência e da pesquisa não são levadas em consideração nem se constituem prioridades deste projeto educacional brasileiro predominante.

Persiste uma oferta elitista em pleno século 21 para apenas 18,4% dos estudantes até 29 anos, com uma exclusão dos demais 82% de jovens trabalhadores, reproduzindo e perpetuando a desigualdade histórica e estrutural de nossa sociedade brasileira.

Em 1982, em uma conferência, o antropólogo e educador brasileiro Darcy Ribeiro afirmou: “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”. Hoje, mais de 43% da população carcerária brasileira é de jovens entre 18 e 29 anos e o Brasil é um dos países que mais mata jovens no mundo.

No país, em 2022, dos 46.409 homicídios registrados, segundo o Atlas da Violência de 2024, 49,2% vitimas eram jovens entre 15 e 29 anos. Foram 22.864 jovens mortos, média de 62 assassinados por dia. Considerando a série histórica dos últimos 11 anos (2012-2022), foram 321.466 jovens vítimas da violência letal no Brasil.

Autor Gabriel Grabowski, professor e pesquisador. Também escreveu e publicou no site “Novos e velhos desafios para educação em 2025”: www.neipies.com/novos-e-velhos-desafios-da-educacao-em-2025/

Edição: A. R.

Ecologia integral: o rumo da conversão

É hora de converter a consciência para o cuidado da Casa Comum e de todos os ecossistemas. E de fortalecer a consciência de que somos terra e não apenas habitamos na terra. Cuidar dela é um compromisso de fé e uma condição indispensável para a nossa sobrevivência.

No princípio, Deus fez surgir o céu e a terra (Gn 1,1). E foi chamando à existência o conjunto da criação. Ao final, olhou para as criaturas e gostou. Viu que tudo estava bem feito e era muito bom (Gn 1,31).

Desta narrativa bíblica, três elementos chamam a atenção: a) a originalidade da obra; b) o poder do artista; c) a perfeição e a beleza da obra. Porém, no uso de sua liberdade inconsequente, o ser humano subverteu a relação com seu Criador, sendo expulso do jardim de Éden para cultivar o solo de onde fora tirado (Gn 3,23). Depois produziu o dilúvio (Gn 6-8: caos ecológico)e a babel (Gn 11, 1-9: caos social). Essas imagens e figuras de linguagem ajudam a compreender a nossa trajetória humana.

Agora estamos em um tempo estranho. O secretário-geral das Nações Unidas (ONU), António Guterres, afirma que entramos na era da ebulição global. Trata-se de um estágio ainda mais caótico do que o aquecimento global.

O Papa Francisco vem repetindo ao longo dos últimos anos que a “Terra está com febre e está doente”. O relatório da Oxfam (2019) intitulado Igualdade Climática: um Planeta para os 99% alerta: “Só há um planeta em que podemos viver, até que não possamos mais”. Informa ainda que, em 2019, o 1% mais rico da população mundial produziu tanta poluição em 2019 quanto cerca de 5 bilhões de pessoas (dois terços da humanidade)[1].

As injustiças e as catástrofes socioambientais são múltiplas, bem frequentes e devastadoras.

O desmatamento, os gases de efeito estufa e a avalanche de resíduos que poluem a terra, o ar e as águas estão entre as causas dos extremos climáticos e das enchentes que estamos experimentando cada vez com mais intensidade. Nunca se ouviu dizer como agora, por exemplo, ser necessário cancelar aulas por conta das ondas de calor, no mesmo território em que o inverno apresenta temperaturas muito rigorosas. Jamais se viu, no Rio Grande do Sul, fumaça das queimadas que ocorrem na Amazônia, como foi possível ver no ano passado. Fatos que expõem uma realidade perigosa e preocupante.

Seja por amor ou pela dor, muitos se mobilizam. Mas, o apelo é para todos e para agora, como foi ressaltado na 47ª Romaria da Terra, realizada dia 4 de março em Arroio do Meio – RS, no Vale do Taquari, uma das cidades mais atingidas pelas enchentes de setembro de 2023 e maio de 2024. Com o tema “Reconstruir e cuidar da Casa Comum com fé, esperança e solidariedade”, os romeiros caminharam pela cidade sob um sol escaldante, vendo e refletindo sobre as profundas perdas e cicatrizes das enchentes.

Em sua reflexão, o bispo da diocese de Santa Cruz do Sul, dom Itacir Brassiani, conclamou a todos para colaborarem com “uma mudança sistêmica e estrutural desse modelo econômico tecnocrático, agressivo e destruidor”. E acrescentou: “se não fizermos isso, essas poucas crianças que hoje nos acompanham viverão num planeta destruído e terão um futuro inviável”!

É a advertência que o Papa Francisco faz a toda humanidade há mais de uma década. Em sua Encíclica Laudato Si, escrita em 2015, propõem a Ecologia Integral, a qual envolve as dimensões: ambiental, econômica, social, cultural, espiritual e do cotidiano. Ele enfatiza a necessidade de um cuidado especial com a saúde da Casa Comum. “Ninguém pode ser saudável em um mundo doente. Proteger o ambiente e respeitar a biodiversidade do planeta são questões que atingem a todos nós. As feridas causadas na nossa mãe terra são feridas que sangram em todos nós”.[2]

Leia mais aqui: www.neipies.com/laudate-deum-um-guia-de-leitura-em-dez-pontos/

A Campanha da Fraternidade de 2025 retoma o tema da Ecologia Integral.

Entre os grandes desafios está a conversão ecológica, conforme já a estimulava o Papa João Paulo II. É possível converter-se para melhor ou para pior, para uma direção ou para outra. Por isso, é determinante ter clareza, convicção e vontade para converter-se na melhor direção e nela permanecer. Nesses tempos em que o planeta sofre graves agressões e tem reações severas, a melhor direção é a Ecologia Integral. Para tanto, é fundamental superar os diversos tipos de negacionismos existentes. Há os que seguem negando fatos concretos, causas e consequências. E, assim, negam-se também a desenvolver qualquer ação em defesa da vida e da preservação da natureza.

É hora de converter a consciência para o cuidado da Casa Comum e de todos os ecossistemas. E de fortalecer a consciência de que somos terra e não apenas habitamos na terra. Cuidar dela é um compromisso de fé e uma condição indispensável para a nossa sobrevivência. Como afirma o grande líder indígena Ailton Krenak: “A gente não vai salvar o Planeta. Mas a gente podia fazer alguma coisa para nos salvar porque nós estamos em vias de extinção nessa balada capitalista, consumista que a gente se meteu”.

Ecologia Integral é mais do que só o estudo e o conhecimento da relação de todos os seres dentro de Gaia, o grande organismo vivo (James Lovelock), a que chamamos Casa Comum. Embora esse conhecimento seja vital, ele não pode restringir-se a mera teoria. Exige ação responsável, cuidado e proteção. A Ecologia Integral é o rumo e o horizonte da conversão essencial em tempos catastróficos. E precisa ser uma compreensão e uma atitude sistêmica e revolucionária em favor da vida!

Autor: Dirceu Benincá. Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e do mestrado em Ciências e Sustentabilidade da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Autor do livro “Em tempos de ebulição”.


[1]. Cf. Igualdade Climática: um Planeta para os 99%. Disponível em: <https://www.oxfam.org.br/>. Acesso: 8 março 2025.

[2]. Cf. “Não podemos ser saudáveis em um mundo doente”, diz Papa. Época Negócios. 5 de junho de 2020. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/Mundo/noticia/2020/06/nao-podemos-ser-saudaveis-em-um-mundo-doente-diz-papa.html>. Acesso: 8 março 2025.

Edição: A. R.

E a Mulher, o que ela quer?

Trata-se de compreender as subjetividades para que as mulheres possam construir uma experiência intersubjetiva, como abertura de espaço comum. Daí o não olhar a mulher como um enigma a ser decifrado, mas sem estranheza, com respeito e reconhecimento.

Ter o seu lugar respeitado, sem dominadores e controladores. Ela quer que seus direitos sejam respeitados, independente das crenças e preconceitos. Apenas se sentir livre para buscar seus caminhos, realizar suas escolhas, sem a preocupação de estar sendo motivo de comentários discriminadores e separatistas. Mulher é busca e caminho.

Há na mitologia grega a Fênix, a ave que renasce das cinzas. O simbolismo da lenda entre tantos significados traz a ideia da esperança, nesse renascer contínuo das cinzas, ou num olhar mais contemporâneo, dá-se o fato de novos saberes que surgem a cada renascer e o aprendizado no enfrentamento das adversidades.

Esta simbologia me faz refletir sobre os desafios enfrentados pelas mulheres, nos diversos lugares onde vivem a atuam, na complexidade de suas experiências de morrer e renascer das cinzas. Há momentos em que parecem sucumbir, que a morte se avizinha definitivamente e eis que surgem das cinzas, expressando novas significações a esse morrer e renascer contínuos.

De que estou falando?

É uma luta incessante essa enfrentada pelas mulheres nos seus cotidianos desde os mais cruéis, até os aparentemente civilizados. A mulher busca sua luz, aparece e se oculta, grita e silencia, canta e chora, reza e blasfema, ultrapassando os seus próprios limites. A mulher é resistência.

Sabe sair de cena, retirar-se e voltar com força, tal como as asas da Fênix, que lembra o voo das águias a dominar céus e terras desconhecidas.

Se pesquisarmos as vidas de nossas ancestrais, temos exemplos belíssimos de coragem, de renascimento, de enfrentamento da morte, porque viver é importante para todas as vidas.

A figura feminina do recato e do encanto desaparece diante de uma guerreira, que sabe o que deseja e busca suas metas nos embates mais difíceis, às vezes quase impossíveis. Há situações em que a mulher retorna, parece voltar a ser subjugada pelas cinzas, respira e alça um novo voo, alcança o espaço e busca seus lugares, realizando seus projetos.

Aqui trata-se de compreender as subjetividades para que as mulheres possam construir uma experiência intersubjetiva, como abertura de espaço comum. Daí o não olhar a mulher como um enigma a ser decifrado, mas sem estranheza, com respeito e reconhecimento.

Autora: Cecilia Pires. Também escreveu e publicou no site “Questões e reflexões sobre o corpo feminino”:  www.neipies.com/questoes-e-reflexoes-sobre-o-corpo-feminino/

Edição: A. R.

Como faz bem ouvir, de vez em quando que seja, que nós também somos bons!

É aquietador escutar: “São muitos os homens bons”. “São inúmeras as boas mulheres”. E como faz bem ouvir, de vez em quando que seja, que nós também somos bons.

Procuro contar aos meus alunos os bons modelos e os melhores momentos revelados por médicos atuais e passados – sou professor de relação médico-paciente e de ética médica.

Não é assim que se faz com o futebol? Se priorizássemos a divulgação não dos “melhores momentos”, mas dos piores, continuaria ele sendo o esporte que mais admiramos?

Pesquisadores já fizeram levantamentos – Martin Seligman, Katherine Dahlsgaard, entre outros – sobre quais atributos pessoais consideramos dignos, éticos, formadores de um bom caráter: 1. capacidade de estabelecer relacionamentos honestos, leais e tolerantes; 2. ter boa empatia; 3. gostar, amar as pessoas e a vida; 4. agir de forma construtiva e querer sempre fazer o que é certo; 5. ser inteligente e capaz, sem deixar de ser humilde; 6. revelar senso de dever e de justiça; e 7. ser um otimista e não um crítico.

Admiramos quem tem algumas das qualidades referidas e, igualmente, aqueles que, não as possuindo, revelam vontade de tê-las e se esforçam para tanto.

Melhoramos com os bons exemplos, é lugar comum, mas, para tanto, precisamos que eles cheguem até nós. Quando muito se fala sobre o mal, sobra pouco espaço para o bem. O hábito de muito criticar, de muito apontar os aspectos negativos, gera desesperança e nada mais.

Pergunto: por que os escritores de novelas as povoam com personagens de mau caráter? Não se trata de propaganda às avessas do ser humano? E a propaganda não é a “alma” do negócio?

Evidentemente que não podemos dar uma de ingênuos, negar as maldades das pessoas distantes de nós e até das que nos são próximas. Negar que, como em todas as profissões, na medicina também há médicos que não deveriam ser médicos.

Mas se, ao passar para meus alunos a “novela da medicina”, eu priorizar os exemplos ruins, ao terminar a aula eles – e eu – verão reforçadas nossas próprias maldades, pois o bem e o mal, outro lugar comum, não convivem dentro de nós?

Ao contrário, como é aquietador escutar: “São muitos os homens bons”. “São inúmeras as boas mulheres”. E como faz bem ouvir, de vez em quando que seja, que nós também somos bons.

Autor: Jorge Alberto Salton. Também escreveu e publicou no site “Bruno estava infectado pelo maniqueísmo”: www.neipies.com/bruno-estava-infectado-pelo-maniqueismo/

Edição: A. R.

Velhas lições disfarçadas de Canções Novas

Não defendo o patrulhamento ideológico, seja na escola, na sociedade ou na religião. Mas uma pessoa que é identificada publicamente com a Igreja Católica e tem uma multidão de seguidores, deve perguntar-se pela ortodoxia daquilo que diz e pelo mal que suas posições teóricas e morais podem causar às pessoas e à sua Igreja.

Havia pensado em dedicar as reflexões de março aos temas da ecologia integral e da emergência climática, tão relevantes quanto urgentes. Mas a conferência de um conhecido influenciador católico num programa de TV, no dia 8 de março, rendeu muita conversa durante a semana toda, e eu decidi entrar no debate. Em pleno Dia Internacional da Mulher, o pregador as confinou ao papel de auxiliares do homem.

No último sábado estava casualmente conferindo a programação dos canais de TV e visualizei o início da referida palestra a um público presencial de mais de mil mulheres. Não sei qual era o número de telespectadoras. Não suportei ouvir mais que cinco minutos, mas tive a percepção de que aquilo não acabaria bem. Dito e feito: passamos a semana ouvindo vozes dissonantes sobre o pregador e sua pregação.

A pregação ocorreu num canal que se apresenta católico. O pregador se apresentou em trajes que o identificam com um homem consagrado.

A pregação católica não é reservada a pessoas credenciadas, mas é preciso questionar: ele falou em nome da Igreja Católica Romana? Sua pregação espelha o ensino e a doutrina da Igreja? A canção parece nova e sedutora, mas as lições são velhas e opressoras…

Não defendo o patrulhamento ideológico, seja na escola, na sociedade ou na religião. Mas uma pessoa que é identificada publicamente com a Igreja Católica e tem uma multidão de seguidores, deve perguntar-se pela ortodoxia daquilo que diz e pelo mal que suas posições teóricas e morais podem causar às pessoas e à sua Igreja. Não precisa frequentar academias renomadas; basta consultar o Catecismo da Igreja…

Sua pregação sobre a mulher não tem nada a ver com aquilo que diz o Catecismo da Igreja Católica: “O homem e a mulher foram queridos por Deus em perfeita igualdade enquanto pessoas humanas e no seu respectivo ser de homem e de mulher. São feitos um para o outro: cada um pode ser auxílio para o outro, uma vez que são, ao mesmo tempo, iguais enquanto pessoas e complementares enquanto masculino e feminino” (cf. §§ 369 e 372).

Nada de submissão servil, caro pregador!

E sobre comunismo (contra o qual o pregador se pronuncia amiúde), e o capitalismo (em relação ao qual não vê problemas), a Igreja católica tem posição: rejeita as ideologias associadas ao comunismo, assim como o individualismo e o primado absoluto do capital sobre o trabalho, que caracterizam o capitalismo. E diz que é uma falácia apregoar que a vida econômica deve orientar-se apenas pela lei do mercado, pois ela precisa ser racionalmente regulada em vista o bem comum (cf. § 2425). Portanto, equilíbrio e coerência, sem derrapagens ideológicas, improvisado mestre!

Respeito a fé e a piedade pessoal do jovem e entusiasmado pregador, mas não posso deixar de registrar a profunda desconformidade das suas pregações em relação ao ensino moral à doutrina social da Igreja. Ele precisa de um pouco mais de formação cristã e comunhão com a Igreja e seu ensino. Que a repentina fama não acabe privando-o da humildade e da salutar autocrítica, anulando o bem que poderia fazer.

Autor: Itacir Brassiani, MSF, bispo de Santa Cruz do Sul – RS. Também escreveu e publicou no site “Desarmar o coração e reconstruir a paz”: www.neipies.com/desarmar-o-coracao-e-reconstruir-a-paz/

Edição: A. R.

Tudo o que a escrita precisa é de leitores

Se todas as pessoas entendessem o valor da escrita, talvez houvesse menos dor e sofrimento. Quem é das letras, sabe. Não penso em publicar ou não um livro. Escrevo porque gosto. Sei que vão se esquecer de mim logo após a minha partida.

Uma pessoa que conheço, olhando bem nos meus olhos, disse que eu deveria escrever para mim:

— Para que expor teus sentimentos? Guarda-os para ti ou fala com teu terapeuta — prosseguiu, argumentando que não achava adequado uma profissional como eu falar sobre a própria vida.

Não respondi. Nada a dizer. Pensei bem e achei melhor não me indispor com quem não lida com esse tipo de viver. Agi com naturalidade. Senti que ela desviou o olhar quando a encarei fixamente. Contudo, nem me mexi. Fiquei ali, parada, e o ar começou a ficar pesado.

Nesse instante, virei as costas e saí, dando um tchau meio sem graça.

Apertando os lábios, como é meu costume, disse para mim mesma:

— Não fraqueje, Elenir. A literatura está te salvando.

Fixei meus olhos apenas nos raios de sol do pleno verão em que estávamos. Segui pela rua em silêncio, respirando fundo. Cabisbaixa, andei, andei e andei — pensativa e, ao mesmo tempo, com uma sensação de paz.

Escrever, para mim, já é uma sina. Há uma ideia comum de que psicólogos são imunes a determinadas dores, que devemos saber lidar bem com as perdas. Mas acredito que expor meu sofrimento, a céu aberto, é uma forma de outras pessoas se sentirem acompanhadas em suas dores.

E há sofrimentos que não devem ser comparados à pedra de Drummond, no meio do caminho…

Quando não tenho o que fazer, escrevo.

Mas também escrevo quando minha lista de afazeres está cheia e, de repente, sinto a necessidade de colocar em palavras o que estou sentindo. Não tem jeito: pego logo o caderno de anotações.

Sou adepta de Clarice Lispector. A própria Clarice fazia anotações à mão sempre que sentia vontade de escrever. Para mim, exprimir o que sinto no momento é libertador — um gesto espontâneo que me livra de tantos males.

Ameniza os efeitos desastrosos das vicissitudes da vida. É um meio de catarse, de não se deixar ser devorada por sentimentos que podem trazer dor. Além disso, também serve para desanuviar a mente.

Quero falar tudo o que tenho vontade, ainda mais agora que alcancei a liberdade de escrever sobre qualquer coisa. Basta uma folha em branco à minha frente, e parto para a escrita, sem me preocupar com o gênero do texto.

Meu sentir está no movimento da caneta sobre o papel. Viro o texto para cima e para baixo. Escrevo, paro, guardo. Reviso outro dia.

Assim, penso ter encontrado um salvo-conduto para a possível felicidade ou, ao menos, para o bem-estar. Quero quebrar o silêncio sem me arrepender depois.

Se todas as pessoas entendessem o valor da escrita, talvez houvesse menos dor e sofrimento. Quem é das letras, sabe. Não penso em publicar ou não um livro. Escrevo porque gosto. Sei que vão se esquecer de mim logo após a minha partida.

Então, passei a não deixar de fazer certas coisas por medo do que possam pensar a meu respeito. Não, não se espantem. Não é que eu esteja pensando “nela” agora. Nem gosto de citar o nome — é apenas a realidade. Minha escrita tem sido original e verdadeira para com meus leitores.

Soledade, RS, Janeiro de 2025.

Autora Elenir Souza. Também escreveu e publicou no site “Por que escrevo”?: www.neipies.com/por-que-escrevo/

Edição: A. R.

Os humanoides e a educação que desejamos

A busca por vantagens financeiras ilimitadas que move as instituições privadas contamina gradativamente os gestores da saúde e da educação, sendo submetidos por uma lógica da produtividade na qual as pessoas se desumanizam gradativamente ao serem conduzidas por processos digitais, nos quais o humano está sendo desumanizado ao ser substituído pela tecnologia e se transformando em humanoide.

Um conjunto enorme de pensadores contribuíram e podem ser incluídos como co-responsáveis para as palavras que seguem. Citar alguns, pode significar injustiça com os inominados, por essa razão vou postergar essa tarefa para uma próxima oportunidade.

É amplamente aceito a ideia de que a evolução e qualificação da educação institucional é dependente de uma organização pedagógica que supere a fragmentação e desconexão de informações, apoiada em disciplinas, componentes curriculares, que não dialogam entre si, nem com o mundo da vida.

Como alternativa, para superar os limites dessa organização pedagógica, o conceito de multidisciplina foi substituído pelo conceito de interdisciplina.Vale registar que a transdisciplina se apresenta como ponto de partida e melhor caminho para promover a ligação entre as múltiplas disciplinas com o mundo da vida. 

Feito esse registro conceitual vale evidenciar que a qualificação necessária para a educação, certamente, não será materializada pelo caminho adotado pela mantenedora das escolas estaduais do Rio Grande do Sul, que está criando uma infinidade de novas disciplinas, na qual os sujeitos definidores, protagonistas e construtores das mesmas não são os educadores nem os estudantes.

Retomando o raciocínio dessa reflexão, ressaltamos que o ponto de partida é o fato de que as instituições educacionais, no seu conjunto, parecem desconectadas da própria missão que é contribuir para a evolução humana, que passa pela qualificação das relações dos seres humanos entre si e com a natureza.

Essa desconexão com a própria missão está materializada em números, comprovando que o aumento do tempo na escola não está significando aumento no aprendizado que contribua para a ampliação do pensamento crítico e para a expansão da consciência humana.

Paradoxo semelhante está materializado nos bilhões em recursos públicos investidos em instituições ambulatoriais e hospitalares, que deveriam promover a saúde, pois promovem o adoecimento, se comportando como uma indústria, na qual os doentes são matéria prima para a maior produtividade possível da mesma.

Uma opção para enfrentar esse paradoxo visualizado na educação, que não cumpre a missão de promover o aprendizado em favor da evolução humana, bem como das instituições hospitalares e ambulatoriais que não cumprem a missão de promover a saúde, é explicitar o modelo epistemológico orientador das instituições de ensino, bem como os propósitos que orientam a gestão das políticas públicas de educação e de saúde.

Ao recuperarmos delineamentos elementares da gestão, temos um conceito que, na teoria, é amplamente aceito.  Trata-se do argumento de que nos temas centrais para a sociedade, nos quais se incluem a saúde e a educação, a gestão deve ser pública, pois sendo privatizada e privada, estará submetida ao interesse do lucro. Veja aqui: https://www.youtube.com/shorts/PPWb1gOcpsg

Diante da situação em que os problemas públicos na área da saúde e da educação se avolumam vertiginosamente, cabe questionar as relações entre os interesses privados do lucro, simbolizados na indústria farmacêutica e das instituições digitais que passaram a controlar o currículo escolar e os planos de aula dos educadores.

A busca por vantagens financeiras ilimitadas que move as instituições privadas contamina gradativamente os gestores da saúde e da educação, sendo submetidos por uma lógica da produtividade na qual as pessoas se desumanizam gradativamente ao serem conduzidas por processos digitais, nos quais o humano está sendo desumanizado ao ser substituído pela tecnologia e se transformando em humanoide.


Autor: Israel Kujawa. Também escreveu e publicou no site “A educação na era digital”: www.neipies.com/educacao-na-era-digital/

Edição: A. R.

Sem sons, sem fantasias, ruas vazias e violência!

O Carnaval tem um histórico riquíssimo na Capital gaúcha. Vamos relembrar com alguns detalhes para falar da tristeza que se abateu sobre nós em 2025.

Estamos falando do Carnaval de Porto Alegre, a capital do Rio Grande do Sul: sem sons, sem fantasias, ruas vazias e violência. Cidade que já teve a terceira população do país, o Estado que era o terceiro mais rico, que tinha encantadores carnavais de rua e de salão.

Em 1956, Athos Damasceno já nos trazia o vigor das artes e da cultura local, com seu festejado livro: Palco, Salão e Picadeiro em Porto Alegre no Século XIX.

O Carnaval tem um histórico riquíssimo na capital gaúcha. Vamos relembrar com alguns detalhes para falar da tristeza que se abateu sobre nós em 2025.

Ele é originário do Entrudo, que passou por épocas de liberação e proibição. Por volta do ano de 1870, o Entrudo cai em desuso pelo surgimento das Sociedades (Esmeralda e Venezianos) que mudam e dominam o carnaval até mais ou menos 1900.

Para quem tiver interesse maior é só pesquisar no livro “Fragmentos Históricos do Carnaval de Porto Alegre”.

Acesse aqui: https://cphpoa.wordpress.com/2019/05/06/981/

Era o Carnaval do povão de Porto Alegre, surgido nos bairros pobres como o Areal da Baronesa e Colônia Africana. Eram redutos de população negra.

Eram tempos áureos das brincadeiras. Era nas ruas da periferia e nos salões como se vê na foto de 1930 que as coisas aconteciam.

As transformações

Uma característica do Carnaval de Porto Alegre foram os Blocos Humorísticos.

As Bandas, hoje quase sumidas, tiveram seu apogeu entre os anos 1970 e 1980. Algumas delas foram a DK, Saldanha Marinho, Medianeira, Por Causas de Quê, Área da Baronesa, JB, Filhos da Candinha, Comigo Ninguém Pode, IAPI, etc.…

Até há tentativas de sua volta, como vi com a Banda DK.

 Hoje dia se fala em Muambas, algo muito particular do carnaval de Porto Alegre com ensaios dos blocos e escolas feitos como uma prévia para o desfile oficial.

Os negros tiveram este papel inicial do Carnaval de periferia e rua. Já os nossos povos originários estavam representados por outras etnias nas Tribos – Arachaneses, Os Aymorés, Os Bororós, Os Caetés, Os Charruas, Os Navajos, Os Potiguares, Os Tapajós,

Aqui não vamos nos deter sobre as diferenças de tribos, escolas, como nem analisar o carnaval de rua e de salão, mas temos que salientar nunca fez feito em nada em se tratando de carnaval.

Os desfiles mais famosos eram aqueles da Santana, imaginem a Pepsi era patrocinadora, na Avenida Borges de Medeiros, na Perimetral e na Augusto de Carvalho sempre no Centro da cidade.

Carnaval expulso e jogado ao Porto Seco

Chamam-no de Complexo Cultural Porto Seco, mas não passa de um lugar ermo, com galpões para as escolas, mas sem arquibancadas, com gastos sem fim a cada ano para fazer um evento longe do povo.

O Porto Seco fica a 22 km do Centro. Imaginem o pessoal da Restinga que tem duas escolas de Samba fazendo uma viagem de mais de 50 km.

Os desfiles das escolas de samba no Complexo Cultural do Porto Seco estão marcados para os dias 14 e 15 de março, sexta-feira e sábado. Ou seja, fora dos festejos nacionais do nosso carnaval.

Nem na Cidade Baixa, onde nos últimos anos, surgiram blocos e grupos de carnaval, outros pelo centro e pela Orla, como em outros locais, não tem carnaval, teve violência.

Por uma pressão do Ministério Público, a Prefeitura decidiu proibir qualquer desfile no bairro boêmio da Cidade Baixa em 2025.

Já não bastasse estarmos vivendo a terceira onda de calor de 38° na cidade, veio a violência policial gratuita contra pessoas nas ruas.

Sem qualquer diálogo, não havia desfile, eram pessoas curtindo o seu tempo livre nas calçadas bebendo, é certo que às vezes extrapolando para as ruas.

No entanto, a Brigada Militar que deveria civilizadamente manter a ordem fez ataques com cavalos, cassetes, batendo nas pessoas.

Um espetáculo horroroso para uma cidade que era acostumada a vivenciar suas alegrias.

De nada neste Carnaval se parece com o esplendor de seu passado, das passeatas e das caminhadas, em especial aqueles de milhares de pessoas que vieram para cá em todas as edições do Fórum Social Mundial.

Da alegria da Borges de Medeiros, foto da Memória CP, jornal da capital, ao que podemos ver em seguida, numa foto que recebi de um morador de um prédio. É a violência contra uma mulher.

Tempos sombrios

Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores a esperança” – (Hannah Arendt)

Da famosa filósofa alemã também é a expressão “banalidade do mal”. Eis que neste ano em Porto Alegre adentramos o calor infernal do verão com a violência ímpar do Estado, gratuita, abalando o processo civilizatório.

Sempre se falou da briosa Brigada Militar. Isto é, uma força honrada, digna.

Nos dias de hoje, a semelhança com a PM do Rio e de São Paulo é grande.

Porto Alegre viveu o terror policial na desocupação dos Lanceiros Negros numa fria noite de inverno. E o local não serve para nada desde então, só vejo ratazanas a circular.

Em outubro de 2023, houve um bestial ataque a ocupantes de um espaço na Cidade Baixa. A ordem era: “botem para quebrar, botem tudo abaixo”.

Nos dias de hoje, vídeos são feitos na hora. Tudo se vê, nada ou quase nada se perde. Foi o caso da violência do Carnaval que não existiu em Porto Alegre.

Temo pela Humanidade!

Autor: Adeli Sell é professor, escritor e bacharel em Direito. Também escreveu e publicou no site “Os gaúchos”: www.neipies.com/os-gauchos/

Edição: A. R.

Charlie Brown e Snoopy discutem o Acordo de Paris

Tanto o tragicômico Charlie Brown quanto o sereno Snoopy, na situação posta, podem estar certos. Se engrossarmos correntes negacionistas da mudança do clima, não há dúvida que Charlie Brown está com a razão. Se entendermos que a temática da mudança do clima precisa ser levada a sério e que ações relacionadas com transição energética, menos consumo de combustíveis fósseis e mais de energias limpas/renováveis, paralelamente à construção de capacidade de adaptação ao novo clima global, ainda há esperança para o snoopynianos.

Imagine se, na cena emblemática que Charlie Brown e Snoopy aparecem sentados na beira de um lago, em vez de refletirem sobre a finitude da vida – “Algum dia todos nós iremos morrer, Snoopy!”, assevera um quase fatalista Charlie Brown. Ao qual, um sensato Snoopy se contrapõe com serenidade, “Verdade, mas todos os outros dias não.” – optassem por discutir o aquecimento global e o Acordo de Paris.

Eis que, refazendo, ficticiamente, o diálogo da bem-conhecida passagem das tirinhas de Charles M. Schulz, o mesmo Charlie Brown diria, “Em 2024 ultrapassamos o limite crítico de 1,5 °C, Snoopy! Atingimos o ponto de não retorno. O Acordo de Paris perdeu o sentido.”, e, como réplica, Snoopy assim se manifestaria: “Um ano apenas pode não significar nada, Charlie!” O Acordo de Paris indica o limite crítico de aquecimento de1,5 °C, causado pela atividade humana, como média de um período de 20 anos”. E, então, se, no diálogo original, Snoopy conseguiu angariar mais aplausos e adeptos para a sua filosofia de vida, quem você imagina que, nessa última cena, poderia estar com a razão?

A resposta mais sensata, quem sabe, você poderia encontrar lendo o artigo “A year above 1.5 °C signals that Earth is most probably within the 20-year period that will reach the Paris Agreement limit”, dos pesquisadores Emanuele Bevacqua, Carl-Friedrich Schleussner e Jakob Zscheischler, que são vinculados a Universidades e Institutos de Pesquisa da Alemanha e da Áustria, recentemente publicado na revista Nature Climate Change (disponível em https://doi.org/10.1038/s41558-025-02246-9)

Vamos rememorar que, em 2023, a temperatura média do ar da superfície da Terra atingiu 1,43 °C acima da temperatura de referência do período pré-industrial (1850-1900). Além dos fatores antrópicos, especialmente associados com a elevação da concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera, naquele ano, a presença do fenômeno El Niño, admite-se, contribuiu para tal. E veio 2024, El Niño encerrou o seu ciclo, La Niña se estabeleceu, mas o planeta não esfriou. Pelo contrário, continuou aquecendo.

Até que, em 2024, foi quebrado o recorde de aquecimento, registrando-se 1,55 °C. Enquanto isso, emergências climáticas (secas severas, ondas de calor, incêndios florestais, inundações sem precedentes, furacões e tornados arrasadores, entre outras), se espalharam e continuam se espalhando pelo mundo todo, inclusive entre nós. Nesse começo de 2025, por exemplo, estamos, no Brasil, imersos na quinta onda de calor, podendo seus efeitos adversos serem sentidos em boa parte do País.

O destaque dado no artigo de Emanuele Bevacqua e colaboradores, merecedor de especial atenção, é que, as implicações desta superação, em 2024, da meta dos 1,5 °C de aquecimento, firmada pelo Acordo de Paris (COP21-2015), embora não estando bem-claras (mesmo com as emergências climáticas de toda ordem mundo afora), não devem ser ignoradas.

Todavia, apesar da dúvida razoável posta pelos autores, por outro lado, acendeu o sinal de alerta que, se, de fato, não for implementada uma política radical de mitigação das emissões de gases de efeitos estufa, o ano de 2024 pode se configurar como o primeiro ano acima de 1,5° C dentro do primeiro período de 20 anos com média de aquecimento global de 1,5°C ou superior; frustrando as expectativas/esperanças postas no Acordo de Paris.

Pareceu confuso? Não. A conclusão é muito clara! O ano de 2024, e isso é muito provável, pode ser o marco do início inequívoco da era do aquecimento global de 1,5 °C motivado pela atividade humana. Indica a urgência de que políticas efetivas de cortes de emissões de gases de efeito estufa sejam postas, globalmente, em prática. E, em paralelo, sobressai-se a necessidade de investimentos na construção da capacidade de adaptação a uma nova ordem climática mundial.

Voltando ao diálogo fictício dos personagens peanuts de Charles Schulz, tanto o tragicômico Charlie Brown quanto o sereno Snoopy, na situação posta, podem estar certos. Se aplaudirmos os que negam a adesão ao Acordo de Paris e engrossarmos correntes negacionistas da mudança do clima, não há dúvida que Charlie Brown está com a razão. Mas, por outro lado, se entendermos que a temática da mudança do clima precisa ser levada a sério e que ações relacionadas com transição energética, menos consumo de combustíveis fósseis e mais de energias limpas/renováveis, paralelamente à construção de capacidade de adaptação ao novo clima global, ainda há esperança para o snoopynianos.

Autor: Gilberto Cunha. Também escreveu e publicou no site “O cemitério das almas fracassadas”: www.neipies.com/o-cemiterio-das-almas-fracassadas/

Edição: A. R.

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