“Mono mmosa khonlipa”
Um braço só não tem forças

 

Já estou completando um ano e meio na missão em Moçambique. Neste tempo, de todas as expressões que ouvi, a mais marcante, pela frequência e pelo significado, é nri vamosá. Na versão em português, o termo dá sentido à expressão “estamos juntos”, enquanto a tradução literal do macua (língua falada em grande parte do norte de Moçambique, apesar de o português ser a língua oficial do país) é “somos um”.

Sabemos bem a diferença entre ser e estar. Estar é passageiro, transitório, efêmero. Ser é definitivo, decisivo. Quando sou, abraço definitivamente o compromisso e agora isso se torna parte do meu próprio ser.

Se assumimos ser um com o outro, o nosso conceito de empatia ganha um novo sentido. Nossos sentimentos já não são pelo outro, mas com ele. Agora, quando nos deparamos com sua angústia, nossa posição muda de “eu sei como você se sente” para “eu sinto com você”. E isso funciona também para alegria, tristeza, raiva, fome.

Como uma parte do meu eu pode estar bem se a outra não está?

Semelhante à filosofia sul-africana do Ubuntu, o nosso Nri Vamosá moçambicano também vai muito além das palavras. Enquanto o mundo se debruça em um conceito de natureza humana baseado na livre escolha pessoal e no individualismo, a experiência de unidade do Ubuntu ou do Nri Vamosá se baseia na ideia da comunidade, onde cada um depende do outro para ser pessoa.

 

“Ubuntu” é uma palavra que representa uma filosofia e uma ética antiga africana que significa: “Sou quem sou, porque somos todos nós”.

Resistência

Nessas sabedorias se justifica o que vejo e vivo em Moçambique e que contraria significativamente as imagens de África que temos. Precisamos ter claro que as colonizações e ultimamente as explorações de recursos naturais e humanos em Moçambique foram e são os grandes responsáveis pela situação de vulnerabilidade do povo.

Esses séculos de dominação europeia deixaram rastros irremediáveis em toda a África e, pior que isso, o neocolonialismo exerce veladamente este poder nos dias de hoje.

A predominância e o crescimento das multinacionais em todo o território africano e, especificamente em Moçambique, monopoliza a terra, os minérios e a água, suprimindo culturas, explorando a mão de obra e devastando vidas.

Por outro lado, a resistência deste povo cheio de força tem sido também a sua salvação em meio a esses contextos de tanta desigualdade e dificuldades.

A teimosia em lutar contra essas dominações e submissões foi o que permitiu que os moçambicanos – e de maneira geral os africanos – chegassem até aqui com uma parte de sua cultura e as próprias vidas preservadas.

O povo é castigado pela fome: não se rende. As terras para plantar estão ocupadas por empresas: caminha mais longe para plantar e colher. A água já não é mais potável: cava poços mais fundos. A casa de barro cai com as fortes chuvas: reconstroi. A morte é presença diária, mas não motivo para desistir.

Conheço inúmeras famílias que sofrem com a seca, com a pequena colheita que conseguem a cada ano ou com a falta de terras para plantar. Apesar disso, vejo todo dia o seu esforço em partilhar o que têm para garantir que todos tenham o alimento necessário.

Outra realidade é o alto número de crianças órfãs em contraste com a ausência de orfanatos ou de abandonos.

Muitas mães morrem no parto ou logo após ele. Outras perdem a vida por qualquer doença não diagnosticada, negligenciada ou não tratada corretamente. E seus filhos? O que acontece com estas quatro, cinco ou até dez crianças? A família acolhe naturalmente, sem crises, caos ou grandes discussões. A tia, a avó, a irmã mais velha, ou até mesmo uma das outras esposas do pai hão de abraçar a responsabilidade de educar e cuidar esses pequenos.

 

Revelação

Eu te louvo ó Pai porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes e as revelastes aos pequeninos.

A experiência de Jesus na revelação do Reino de Deus foi de rejeição por parte da elite política, econômica e religiosa da época. A acolhida da boa-nova aconteceu nos pobres, vulneráveis e excluídos.

Hoje, esse mesmo Reino é a nossa luta por igualdade, justiça e paz. Como há dois mil anos, o anúncio não se dá nos megaprojetos de um suposto desenvolvimento, ou pelos grandes intelectuais. Nem pelas bocas dos patrões ou governantes. Quiçá por nós, missionários.

Acostumados a desqualificar ou minimizar os conhecimentos e as práticas dos povos tradicionais, ainda temos muito que aprender neste caminho rumo a plenitude do bem viver. A terra sem males que sonhamos e esperamos é proclamada a cada dia na vida dos pequenos. Nri vamosá é a verdadeira vivência da fraternidade.

Nessa reciprocidade, a vida acontece plena no amor espontâneo, solidário e gratuito. No encontro com o outro me reconheço, me formo, me somo e me completo.

Sou quem sou porque somos todos nós e, por amor, somos um.

Victória Holzbach, jovem jornalista em Moçambique, revela, com um pouco mais de um ano como missionária leiga, que o jornalismo ficou em segundo ou terceiro plano e que a realidade concreta das pessoas com as quais atua exige outras habilidades e intervenções. Revela, ainda, como é grande a sua transformação pessoal.

 

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