É impossível ser feliz num mundo onde crianças morrem sob o fulgor das bombas, das metralhas e escombros; onde a fome grassa como peste negra, matando gente de todas as idades; onde governantes desumanos, a pretexto de azeitar o sistema, as engrenagens do sistema, aceleram as formas de aniquilar os defeituosos de todas as idades, das mais variadas etnias, num diabólico exercício de higienização.

 

Desde menino eu soube que seria uma peça defeituosa. E o sistema, a engrenagem, prescindi de coisas defeituosas, seja porca, parafuso, corrente ou roda dentada, prejudicando as velocidades angulares e os torques dos eixos, independentemente de serem cônicas, helicoidais ou hipóides. Qualquer coisa fora do padrão, prejudicando o movimento uniforme é deixada de lado.

Cresci, estudei e fui ser jornalista, porém, bem fundo, enfiado em minhas entranhas, o artista pulsava, causando defeito nas engrenagens.

Para aliviar a tensão criada (sufocando o vulcão interior) dediquei-me à literatura, escrevendo compulsivamente por longo período, aliviando, assim, a intensidade das lavas internas. Funcionou por um tempo. Até que, de súbito, agarrei-me aos pincéis, às telas e ao cavalete e a mecânica do mundo, do meu mundo, alterou-se.

As peças que tinham falhas falharam de vez. Tornei-me um parafuso de rosca sem rosca, um pinhão defeituoso danificando o sistema de transmissão entre as engrenagens.

Evidentemente que paguei (e pago) valor altíssimo pelos defeitos apresentados, pois o sistema refuga o imprestável. Entretanto, explodiu dentro de mim a semente da liberdade, levando sangue às regiões mais distantes e improváveis do meu corpo, rejuvenescendo-o. Foi como se torrencial chuva inundasse o deserto de Gobi, na Ásia, o quarto maior deserto do mundo, nutrindo-o.

Hoje sou quase feliz em meu ateliê, meio às telas, aos pincéis e tintas, fazendo de meu cavalete a nave do capitão Nemo.

 

Digo que sou quase feliz porque é impossível ser feliz num mundo onde crianças morrem sob o fulgor das bombas, das metralhas e escombros; onde a fome grassa como peste negra, matando gente de todas as idades; onde governantes desumanos, a pretexto de azeitar o sistema, as engrenagens do sistema, aceleram as formas de aniquilar os defeituosos de todas as idades, das mais variadas etnias, num diabólico exercício de higienização.

Sim, quase feliz. Lê-se este quase como se fosse móvel ponte sob o precipício da crueldade. Equilibro-me sobre ela, porém não há como espantar a visão da desumanidade que domina o mundo.

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