O universo da cultura

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 “O homem não é o que é,
mas é o que não é” (Gusdorf)


Não são poucas as vezes que nos deparamos diante de questões de ordem cultural em nosso dia-a-dia. Com frequência ouvimos que conflitos sociais surgem devido às diferenças culturais.

Mas, o que é mesmo cultura? A palavra cultura tem origem latina, vinda do verbo Colere, que significa Cultivar. Isto é, o cuidado que o homem tem com aquilo que a terra lhe produz. Daí o conceito de Agri-cultura como cultura dos campos. Além disto, cultura significa o cuidado e a relação dos homens com os deuses; daí Culto A palavra cultura também adquiriu um significado de cuidado com a própria alma e com a Formação Humana. Por isto que para muitos, cultura significa o grau de conhecimento das ciências e das artes que determinada pessoa possui.

No entanto, antes de adentrarmos na problemática da cultura, retomemos a pergunta originária da reflexão filosófica: o que caracteriza o ser humano? Nesta nossa busca por entender quem é o homem não podemos negar também seu aspecto cultural. Identificar a cultura como aspecto constitutivo da natureza humana é aceitar que o homem se faz organizando uma cultura, ele se torna ser humano na medida que constrói uma “ponte” entre a sua humanidade e a própria natureza.

Muitos historiadores e antropólogos compreendem que o que nos torna verdadeiramente humanos e nos diferencia do mundo natural é a cultura. Segundo esta perspectiva a cultura foi a forma mais primitiva, a primeira manifestação do espírito humano uma vez que ela se constitui fundamentalmente em algo que “conforta” o homem diante da realidade (natureza) que se apresenta a ele de forma assustadora.

Em sentido antropológico, não falamos de cultura, no singular, mas em culturas, no plural, pois a lei, os valores, as crenças, as práticas e instituições variam de formação social para formação social. [1]

Em geral, os ritos, as danças, as festas e crenças revelam que o homem se relaciona com o mundo em que vive criando manifestações artísticas a partir das características geográficas que circundam. Desta forma, veremos que as manifestações culturais de uma comunidade de esquimós é bastante diferentes de uma aldeia de nativos australianos. Seus ritmos, sua culinária, suas festas e crenças se diferenciam na medida em que são resultado do meio em que habitam.

No entanto, há uma profunda identificação entre uma comunidade de esquimós e a aldeia dos nativos australianos, entre índios americanos e comunidades hindus, entre as pessoas que vivem nos aglomerados urbanos das grandes metrópoles e os agricultores da comunidades rurais: cada grupo social cria a cultura como forma de relação com a natureza.

O que é, então, a cultura?

Como resposta a esta questão podemos afirmar que a cultura é um “processo de autoliberação progressiva do homem, o que o caracteriza como um ser de mutação, um ser de projeto, que se faz a medida que transcende a própria existência”[2] ou como “processo pelo qual o homem acumula as experiências que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa as de efeito favorável e, como resultado da ação exercida, converte em ideias as imagens e lembranças, a princípio coladas às realidades sensíveis, e depois generalizadas, desse contato inventivo com o mundo natural”[3]

Cultura: o conjunto dos modos de vida criados e transmitidos de uma geração para outra, entre membros de determinada sociedade; englo­ba o que pensamos, fazemos e temos enquanto membros de um grupo social; a resposta oferecida pelos grupos humanos ao desafio da existên­cia, resposta que se manifesta em termos de comportamento, conheci­mento e paixão.

A cultura é o que nos faz diferentes do mundo natural. O homem encontra a natureza, estabelece leis e organiza as relações. Este distanciamento da natureza, de certa forma, fragiliza o homem na medida em que passa a perder a harmonia que ele tinha com o mundo natural quando nada mais se apresenta como certo e inquestionável.

No entanto, o que inicialmente parece uma fragilidade, torna-se a capacidade homem produzir a sua própria história, estabelecendo seus valores. Neste sentido, a cultura pode ser compreendida como a “maneira pela qual os seres humanos se humanizam por meio de práticas que criam a existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e artística.”[4]

Cultura enquanto Relação

O que constitui uma cultura é a relação que o homem estabelece com o outro: Quem é, então, este Outro.

Primeiramente, este outro é a própria 1) natureza. O homem ao nascer depara-se com leis naturais fixas e imutáveis. Diante da sua incapacidade de modificar estas leis ele estabelece uma cultura que o tranquiliza diante do determinismo no qual está envolto. Em seguida, o outro passa a ser os 2) Deuses que podem significar a “ponte” entre o homem e o universo cósmico e expressam o desejo de transcendência do ser humano. Por fim, o outro pode ser o próprio 3) homem, isto é, seu semelhante.

Na medida em que nos relacionamos com os nossos semelhantes, estabelecemos uma cultura, uma relação que pode variar, conforme o contexto onde esta relação vai acontecer. Karl Marx, filósofo do século XIX, considera a cultura como fruto das relações sociais e de produção entre os homens. Assim, o Império Romano produziu um tipo de cultura, o sistema feudal e o capitalismo produziram um tipo de cultura. Segundo ele, assim surgem as classes sociais e a exploração de uns sobre os outros.

Cultura superior x cultura inferior:

“(…)as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.” (Boaventura de Souza Santos)

Se observarmos a nossa realidade, veremos que existem cientistas com um considerável conhecimento sobre questões bastante específicas e pessoas que sequer sabem escrever seu próprio nome.

Veremos, também, que existem pessoas que apreciam ópera e conhecem a estrutura musical das composições de Bach e outras que se contentam em ouvir sons eletrônicos onde a harmonia e o compasso nem sempre são características fundamentais. Além disto, se observarmos a história do Brasil perceberemos que houve um choque cultural no encontro entre os europeus que dominavam a ciência e os nativos que aqui viviam de maneira rudimentar.

Diante do exposto acima, podemos afirmar que existe cultura superior e cultura inferior?

Esta pergunta é importante porque não foram poucas as vezes em que este conceito foi utilizado no decorrer da nossa história. Podemos perceber o “emprego” desta compreensão de cultura na antiguidade, onde os gregos realizaram a chamada Helenização do Ocidente, através da difusão do ideal humano com valores definidos, quem não fosse helênico era considerado um ser culturalmente inferior.

No império Romano os cristãos foram perseguidos e mortos por expressarem valores culturais adversos aos do império. Da mesma maneira, a igreja católica, na idade média, combateu todas as formas diferentes de manifestação cultural que fugissem do esquema teológico-cristão.

Já no mundo moderno, a cultura procurou superar esta compreensão teológica da natureza e passa a acreditar na capacidade humana de compreender a realidade. Desenvolvem-se as artes, a política e as ciências naturais e a idéia de cultura passa a ser a “Cultura da Racionalidade” . Quem estivesse fora da racionalidade moderna era considerado inculto.

Não foram poucos os pensadores que acreditavam que os nativos “descobertos” na América não passavam de animais com características físicas semelhantes a dos humanos, mas sem nenhum traço cultural. Até mesmo o conceito de catequização dos índios, difundido pela igreja, era uma maneira de “inserir os selvagens no mundo ocidental”.

Por fim, em nosso cotidiano com freqüência constatamos o uso do conceito de superioridade cultural, seja nas disputas e conflitos étnicos que eclodiram em várias regiões do planeta no século XX, seja nas relações sociais que acontecem no mundo do trabalho e da nossa convivência.




Entenda como se configurou a identidade étnica no Brasil.

A partir da segunda guerra mundial percebemos como esta questão ainda está bastante presente nos nossos dias. A perseguição e o extermínio de milhares de judeus, fundamentado no conceito de superioridade da raça ariana; o antissemitismo na Europa e nos EUA, os atentados terroristas de 11 de setembro e a guerra entre Israel e Palestina são, além de exemplos alarmantes, um indicativo de que a paz mundial passa, necessariamente pela redefinição do conceito de cultura.

Existem dois tipos de cultura: da sociedade e da comunidade. A cultura da sociedade se impõe sobre a cultura da comunidade. A sociedade pela ideologia fragiliza a cultura das comunidades.

Sobre a charge: Autoria Laerte Coutinho (São Paulo, 1951]. Uma das principais cartunistas brasileiras, Laerte sempre conciliou arte com posicionamento político e crítica social, desenhou para diversos periódicos, criou revistas, publicou livros e escreveu para a televisão. Fonte: Memorial da Democracia


Autor do texto: Jandir Pauli, professor do PPG em Administração da IMED, graduado em Filosofia e Doutorado em Sociologia.



Sugestões de uma prática pedagógica – Disciplina Filosofia

Esta atividade pode ser aplicada a estudantes de Nono Ano do Ensino Fundamental ou do Ensino Médio. No Nono Ano, Unidade temática Política: Conhecimento e Estética, Objetos de Conhecimento: Temas relacionados à filosofia política (A construção do conceito de cidadania e cultura), Habilidades: analisar e compreender as mudanças de concepções socioculturais e políticas no tempo e no espaço.

Questões para pensar:

1) O que significa cultura de um modo geral?

2) O que a cultura, na sua forma primitiva, trouxe ao homem? Isso lhe fez bem?

3) A cultura faz o homem ser diferente do mundo natural. Essa afirmação é verdadeira ou falsa segundo o texto? Explique.

4) O homem estabelece sua cultura em relação ao “outro”. Quem são os três “outros” personagens que se relacionam com o homem pela cultura?

5) Como podemos perceber a questão da superioridade e inferioridade cultural em nosso cotidiano?

6) Por que você acha que o autor do texto resolveu publicar aquela charge no final da publicação? Como relacionar esta charge com a construção cultural da sociedade brasileira?

7) Escreva alguns exemplos de expressões culturais que você conhece em sua cidade.

8) Monte um quadro comparativo de duas regiões diferentes do Brasil e de um país estrangeiro. Use elementos culturais da música, dança, culinária e outros que descobrir.

9) No vídeo “Diversidade étnica brasileira” (https://youtu.be/Cd8wWgrnjSc?t=3 ), é apresentado um roteiro da história do Brasil. Quais são as características da formação e da identidade étnica brasileira?

[1] CHAUI, Marilena, Convite à Filosofia. São Paulo, Ática. 1998.

[2] ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires, Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1986, p.5-6

[3] Op. cit. Vieira Pinto, Ciência e Existência, pg. 123 em ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires, Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1986, p.5

[4] CHAUI, Marilena, Convite à Filosofia. São Paulo, Ática. 1998.

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