O perfume francês e a aula remota

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Amor rima com flor e com professor.
Francês só rima com freguês, do capitalismo
e do consumismo utópico.


Quem ensina a crianças deve saber o quanto elas gostam de nos abraçar e cheirar. Com essa preocupação, sempre fui às minhas aulas o mais bem vestida possível nas escolas que não exigem fardamento, gastei muitas vezes o meu salário quase todo para comprar um perfume francês que tivesse um cheiro agradável e que ficasse fixo no corpo durante várias horas.

Criança gosta de sentir cheiro bom. Aliás, todo mundo gosta.

Pois bem, com o ensino remoto, nada mudou em mim. Continuo me arrumando para dar aulas e o mais engraçado de tudo isso é que uso o meu mais caro e cheiroso perfume antes de começar a dar aula remota. Talvez no meu inconsciente eu pense que os alunos vão sentir meu cheiro e, por isso, devo estar cheirosa e bem arrumada.

Conheço uma amiga que passa o melhor batom nos lábios para dar a sua aula remota. Cada um se reinventa como pode nesse distanciamento social que vivemos, longe dos abraços e cheiros dos nossos alunos.

Tenho um colega professor que coloca gravata e camisa de manga comprida para dar sua aula remota. Ele diz que se sente mais importante com a gravata. É como se ela lhe desse um poder maior diante das câmeras. Na sala de aula, ele tem a lousa para impor o seu poder; no ensino remoto, a gravata. Poder esse não de superioridade ou de se achar o melhor, mas de impor respeito diante dos alunos que estão longe e não sabemos o que estão fazendo.

Durante esses quase cinco meses de aula remota já consumi quatro vidros de perfume francês. Além de lavar bem os cabelos com xampu, secá-los, penteá-los e deixá-los bem arrumados para aparecer no vídeo um pouquinho mais bonita, também tomo um banho de perfume francês para ficar cheirosa. Mamãe vive a me perguntar para que tanto perfume se os alunos não vão me cheirar, se a conexão da internet não transmite ainda o nosso cheiro. Eu fico sem saber o que responder. Só sei dar aulas estando perfumada.

Conheço uma professora que tem uma mania diferente da minha. Cada um do seu jeito, e eu respeito. Ela gosta de calçar belas sandálias para dar aulas remotas, mesmo sem aparecerem nos vídeos. Diz ela que era o costume da sala de aula física. E lá vai de salto alto para frente das câmeras numa elegância que só ela tem.

Os nossos professores são mesmos os melhores do mundo. Não por isso que digo aqui, mas por serem criativos num mundo onde a criatividade está perdendo espaço para o que já está pronto, o que não dá trabalho. Tipo: o material didático para o professor que traz a aula pronta para ser dada. Motivo para outro ensaio literário. Por hoje, quero falar apenas de perfumes, sandálias e criatividade.

Em tempos de pandemia, cada professor do Brasil inteiro, em sua casa, resolveu de um jeito criativo dar a sua aula remota para que o aluno do outro lado da tela não se disperse ou a ache chata.

Sim, porque uma hora de aula remota pode ficar cansativa se o professor não tiver criatividade para fazer com que os seus alunos fiquem sentados de frente para a tela do computador ou smartphone vendo alguém tentar explicar coisas que, para eles, até mesmo pessoalmente, podem ser difíceis de entender. Na aula remota, não há tempo para explicações repetidas.

Neste mundo de perfumes e criatividade, encontrei uma professora amiga minha que me mandou umas fotos das suas belas aulas remotas. Fiquei surpresa! Espantada! Tudo lindo! Vale ressaltar que é uma professora de escola pública, não desmerecendo os professores de escola privada, pois esses podem comprar perfumes franceses. Já os professores de escolas públicas mal podem comprar um batom. Mas essa minha amiga professora é uma artista e tem maquiagem em casa comprada em lojas de importados onde tudo sai pelo preço de R$ 1,99, aqui na minha cidade.

Essa minha amiga já deu aula maquiada de vampiro para uma aula sobre contos de terror, com o rosto maquiado num formato de borboleta, com tranças de algodão enormes na cabeça para falar dos contos de fadas e segurando um guarda-chuva para não se molhar no meio da chuva que caía na sua linda imaginação dentro de casa. Ela me mandou as fotos, as quais salvei no meu celular.

Fiquei deslumbrada com a sua criatividade! Seus alunos amam as suas aulas e alcançaram notas muito boas em suas avaliações. O seu computador ainda é um velho desktop do início do século, que, de vez em quando, trava no meio da aula. Mas ela sabe bem lidar com ele. A sua conexão com a internet é lenta e, às vezes, as suas aulas são interrompidas mesmo no meio da explicação.

O importante nisso tudo é saber reinventar-se. Reinventar é a palavra do momento com o ensino remoto. Descobriram e passaram a valorizar não só o professor de Artes Visuais e Cênicas da escola, mas os professores de todas as disciplinas.

Conheço uma professora de Geografia que desenhou o rostinho de cada aluno seu e colou-o em palitos de churrasco numa mesinha. Fez isso para que, quando a saudade bater, possa ir lá e olhar para eles. Os desenhos são horríveis, mas valeu a sua intenção. Valeu a sua originalidade.

Acredito que cada um de nós, professores, tem o próprio jeito de matar as saudades dos nossos alunos com o distanciamento social devido a essa pandemia.

Voltando aos meus perfumes franceses, eles não são importados, não, viu, gente? São legítimos. E custam os olhos da cara. Vai-se assim embora o meu salário do mês. O que mais sinto falta nos meus alunos nesse ensino remoto é o cheiro no rosto e a seguinte expressão dita com todo o carinho do mundo: “Tia só vive cheirosa.” A tia continua cheirosa mesmo que vocês não consigam sentir o meu cheiro.

Os alunos se espelham nos seus professores, isso é verdade. Sempre gostei de dar aulas com roupas esportivas para incentivar a prática dos esportes nos meus alunos. De repente, eles começaram a me chamar para campeonatos de karatê, futebol de salão e corridas na praia. Eu, com quase metade de um século vivido, não tenho mais fôlego para correr atrás de meninos numa quadra esportiva, apesar de amar os esportes.

O mais interessante é que eles gostam do meu jeito de me vestir. Mas, o perfume francês eles amam muito. Já chegaram a me dizer isto: “Tia, hoje estou cheirosa igual a senhora.” E estava mesmo. Meus olhos encheram de lágrimas porque, num país onde o salário mínimo mal dá para comprar uma cesta básica, como os pais dessas crianças poderão comprar perfumes franceses?

Quem não pode comprar perfume francês compra os da Avon, que são tão cheirosos quanto os meus. Tenho uma amiga que só sente o cheiro de perfume francês quando está perto de mim ou passa de frente a uma loja de perfumes no shopping. Cada um com o seu cheiro. O importante é estar cheiroso diante das câmeras.

Outro dia, brincando com os alunos, eles acharam um furinho no meu sapato e ficaram espantados. Fiz de tudo para esconder deles os furinhos nos meus sapatos e roupas velhinhas que tanto gostavam, mas não teve jeito. Não fizeram nenhum comentário. Ao contrário, sorriram e me mostraram os furinhos dos seus sapatos também. Crianças são mesmo o melhor que há no mundo.

Na minha infância, tive uma professora que cheirava a flores. Era a melhor professora do mundo para mim naquela época! Quando ela ia chegando na escola a gente corria para abraçá-la e cheirá-la. Ela dizia toda sem jeito: “Estou suada, crianças”. Também pudera, já vinha de outra escola num ônibus lotado. Eu me lembro bem do seu cheiro de flores do campo. Talvez eu tenha adquirido esse hábito de dar aulas toda cheirosa dessa professorinha que me ensinou o á-bê-cê com tanto carinho.

Que todos nós, professores e professoras, possamos continuar cheirando a perfumes francês ou a flores. Afinal, amor rima com flor e com professor. Francês só rima com freguês, do capitalismo e do consumismo utópico. Agora vou me perfumar para a minha primeira aula do dia. Bom dia a todos! Boas aulas!



Fotos: arquivo pessoal/divulgação

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