Interculturalidade e Cidadania Universal

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A globalização econômica, tecnológica, cultural e religiosa influencia diretamente a educação, interferindo até mesmo no modo de organização das instituições de ensino, seja na Educação Básica ou no Ensino Superior. Nesse contexto, consolida-se uma tendência que reduz cada vez mais as disciplinas humanistas para a formação pessoal e profissional dos cidadãos.

Na obra Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades, a filósofa americana Martha Nussbaum (2015) defende as humanidades e as artes como fundamentais para a formação de cidadãos democráticos e participativos, numa sociedade complexa e global. Ela preocupou-se com o fato de que em muitos países os objetivos da educação estão voltados apenas para o crescimento econômico do mundo globalizado, instrumentalizando o ensino que forma alunos economicamente produtivos, ao invés de indivíduos críticos e cidadãos conscientes e compreensivos dos problemas que precisam ser enfrentados num mundo cada vez mais complexo e plural. Esse enfoque nas competências lucrativas, para a autora, enfraquece nossa percepção de crítica à autoridade e minimiza nosso apreço aos segregados e aos “diferentes de nós”.

A ideia de educação para sermos cidadãos do mundo vem de longa data e não é um desafio que se coloca apenas nos tempos atuais. Nussbaum (2005, p.77-78) retoma Diógenes, filósofo do antigo mundo grego, e toda a tradição estoica do mundo romano, mostrando que ambos já anteviam essa dimensão das obrigações morais e sociais que extrapolam nossa origem de nascimento, de identidade local, de pertencimento a um grupo. Compreender a dimensão cosmopolita e a ideia de educação para sermos cidadãos do mundo, para Nussbaum (2005, p.78), é “uma fonte de recursos essenciais para a cidadania democrática” e deveria “estar no centro da educação superior atual”.

A ideia de uma “educação multicultural”, considerada em nossos dias por setores conservadores como sendo uma moda passageira e inadequada, gozava de grande prestígio na Grécia de Sócrates e mesmo de Heródoto. De fato, como observa Nussbaum (2005, p.79), “Sócrates cresceu numa Atenas já influenciada por essas ideias no século V a.C.” e Heródoto, um dos mais celebrados historiadores etnográficos da antiguidade, “assumiu seriamente a possibilidade de que Egito e Pérsia poderiam ter algo que ensinar a Atenas sobre valores sociais”.

O processo educativo poderia ajudar a perceber e a constituir uma tomada de consciência de que aquilo que é visto como normal e natural em determinada cultura é completamente estranho e causaria escândalo numa outra cultura. Esse processo ajuda não só a perceber as diferenças como também a dar-se conta de que os modos de vida de cada grupo “não são os modos desenhados pela natureza para todas as épocas e pessoas”, mas são tão somente normas históricas produzidas em distintos contextos culturais.

Na Atenas do século V, a indagação socrática colocará em questionamento se os jovens deveriam ser educados na simples assimilação indiscriminada de valores tradicionais ou se deveriam ser mobilizados pelo questionamento ético. A educação espartana e a educação ateniense são apresentadas pela própria Nussbaum (2005, p.80) com duas formas distintas de educar os jovens: na educação espartana, tem-se uma cultura hierárquica e não democrática, a caracterização da uniformidade e o cumprimento inquestionável das regras, em um contexto no qual o bom cidadão é concebido como aquele que segue de forma obediente as regras tradicionais; já na educação ateniense tem-se uma cultura democrática em que ensinar a liberdade de indagação e o debate possibilitava dotar os jovens de instrumentos que lhe permitiam eleger seu próprio modo de vida, pois esse tipo de educação “requer uma ativa indagação e a capacidade de contrastar alternativas”. Sendo assim, para Nussbaum (2005, p.80), seguindo o posicionamento socrático, “a indagação ética requer um clima em que os jovens sejam incentivados a serem críticos de seus costumes e convenções, e que a indagação crítica, requer a consciência de que a vida contém outras possibilidades”.

Outros dois exemplos interessantes sobre como o estudo intercultural já fazia parte dos pensadores da Grécia Clássica se referem a Platão e a Aristóteles. “No livro V da República”, diz Nussbaum (2005, p.81), “aparece um exemplo particularmente fascinante, relativo ao modo em que a reflexão sobre a história e outras culturas desperta a reflexão crítica”, ao tratar especificamente sobre a forma como Sócrates elabora um argumento defendendo “a igualdade de educação para as mulheres”.

Aquilo que é considerado estranho e ridículo dentro de uma determinada cultura (no caso, na cultura ateniense), “não pode por si mesmo dar-nos argumentos válidos a respeito do que deveríamos fazer”. No que se refere a Aristóteles, o estudo intercultural ganha sistematicidade e se converte em tema central do currículo. A elaboração da constituição ateniense, por exemplo, é resultado de um amplo e cuidadoso estudo por parte dos alunos e do próprio Aristóteles para mostrar a dimensão transcultural da constituição, bem como sua noção de política.

Mesmo que o tema já estivesse presente na forma como Sócrates, Platão e Aristóteles trataram a inteculturalidade, a expressão “cidadão do mundo” não foi cunhada por eles e sim por Diógenes (404-323 a. C.): foi ele, segundo Nussbaum (2005, p.83), que optou por uma vida desprovida das habituais proteções dos ricos e poderosos, pois temia perder a liberdade; preferiu viver a pobreza e o desprendimento para manter firme o propósito de independência do pensamento; considerava a liberdade de expressão como a condição mais sublime da vida humana.

Para Diógenes, segundo Nussbaum (2005, p.85) “o verdadeiro fundamento para a associação humana não é o arbitrário ou o mero costume, mas sim o que podemos defender como bom para os seres humanos”, ou seja, compreender que a humanidade está acima de qualquer particularismo, nacionalismo ou crença.

Os filósofos estoicos também são indicados por Nussbaum (2005, p.85) como uma tradição de pensamento que expandiu a ideia do estudo intercultural e de cidadania universal, transformando o conceito de cidadão do mundo em “um elemento central do programa educacional”. Nesse sentido, seguindo os passos do estoico Sêneca, a educação deveria nos ajudar a tornar consciência de que cada um é membro de “duas comunidades: uma que é verdadeiramente grande e comum […] em que não tomamos em conta um setor ou outro, senão que medimos os limites de nossa nação por meio do sol; a outra comunidade é a que nos tem sido atribuída pelo nascimento” (apud NUSSBAUM, 2005, p.85).

O nascimento em uma determinada cultura não passa de um acidente, pois pertencer a uma classe social, a um grupo étnico, professar uma crença, praticar certos costumes não deveriam ser barreiras para reconhecer os ingredientes fundamentais da humanidade: o saber, a razão e a capacidade moral. A radicalidade de uma cidadania universal nos estoicos gregos e romanos se dá, na leitura de Nussbaum (2005, p.86), quando defendem que nosso primeiro compromisso deveria ser a lealdade para com a humanidade, “pela comunidade moral constituída por todos os seres humanos”.

Nussbaum (2005, p.86) também destaca a dimensão da cidadania universal na obra do estoico Cicero quando este argumentava em seus escritos “que o dever de tratar a humanidade com respeito nos exige tratar aos estrangeiros em nossa terra com honra e hospitalidade”. Cicero também defende que nunca deveríamos nos envolver em guerras agressivas, que a justiça deveria se sobrepor às conveniências políticas e que “formamos uma comunidade universal da raça humana cujos fins correspondem aos fins morais de justiça e bem estar humano”.

Ser cidadão do mundo não significa ignorar ou renunciar certas filiações locais, mas sim dar-se conta de que estamos rodeados por círculos concêntricos: o primeiro é a própria identidade; o segundo, a família imediata e o restante da família; depois, os vizinhos ou os grupos locais; na sequência, os grupos étnicos, religiosos, linguísticos, profissionais e de gênero. Mas além de todos esses está o círculo da humanidade.

“Nossa tarefa como cidadãos do mundo e como educadores que prepara as pessoas para que sejam cidadãos do mundo”, ressalta Nussbaum (2005, p.88, grifos da autora), “será ‘levar os círculos de alguma forma até o centro’, fazendo a todos os seres humanos semelhantes a nosso concidadãos”, ou seja, trabalharmos intensamente para que todos os seres humanos formem parte de nossa comunidade de diálogo e de preocupações, mostrando respeito pelo humano, independentemente de credo, raça ou religião.

Nussbaum (2005) acredita que a educação tem uma imensa responsabilidade para avançar na direção de uma formação cosmopolita. Aprender as culturas, ser um intérprete sensível e empático dos costumes distintos do familiar, cultivar atitudes de respeito, atenção e escuta são algumas indicações vindas da longa tradição estoica e que podem ser indicativos importantes para estruturar programas educacionais contemporâneos. Não seria defensável apresentar programas antissemitas, ou leituras preconceituosas nos processos formativos. Mas seria plenamente indicado que houvesse programas que fomentassem a sensibilidade em prol da cidadania universal.

Conforme ressalta Nussbaum (2005, p.94), “a proposta estoica é que deveríamos selecionar programas de estudo que fomente o respeito e a solidariedade mutua para evitar a ignorância que se apoia no ódio”. Trata-se de um desafio educacional imenso nos tempos atuais em que os particularismos, a xenofobia, o racismo, a misoginia e tantas outras práticas anti-cidadãs estão presentes no cotidiano das pessoas. Para além de um turismo estritamente mercadológico, cuja finalidade principal seria enriquecer grupos econômicos que querem transformar tudo em dinheiro, a cidadania universal poderia se tornar um intenso e promissor processo formativo de interculturalidade que promove o respeito ao outro e às diferenças em prol de uma sociedade inclusiva, digna e democrática.

O texto apresentado aqui constitui parte de uma trabalho mais amplo desenvolvido no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior (Gepes/Ppgedu/UPF) coordenado por mim e que congrega diversos orientandos de mestrado, doutorado e pós-doutorado, egressos do PPGEdu, bolsistas de Iniciação científica e diversos pesquisadores de diversas instituições de Ensino Superior espalhadas pelo Brasil.

Uma discussão mais ampliada desta temática pode ser localizado na Coletânea Leituras sobre Marta Nussbaum e a Educação (Fávero; Tonieto; Consaltér; Centenaro, 2021), de modo especial no capítulo 8, intitulado “Interculturalidade e cidadania Universal: o papel imprescindível das humanidades na perspectiva de Nussbaum” que escrevi em parceria com a Dra. Flávia Stefanello e a Me. Fracieli Nunes da Rosa (2021). Segue o link para os que tiverem interesse em ler o texto completo:

https://www.researchgate.net/publication/355037187_8_-_Interculturalidade_e_cidadania_universal_-_o_papel_imprescindivel_das_humanidades_na_perspeciva_de_Nussbaum

Referências:

FÁVERO, Altair Alberto; STEFANELLO, Flávia; ROSA, Francieli Nunes da. Interculturalidade e cidadania Universal: o papel imprescindível das humanidades na perspectiva de Nussbaum. In: In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro; CENTENARO, Junior Bufon (orgs.). Leituras sobre Martha Nussbaum e a educação. Curitiba/PR: CRV Editora, 2021, p.143-158.

FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro; CENTENARO, Juniro Bufon (orgs.). Leituras sobre Martha Nussbaum e a educação. Curitiba/PR: CRV Editora, 2021.

NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

NUSSBAUM, M. El cultivo de la humanidade:  una defensa clásica de la reforma em la educación liberal. Barcelona: Paidós, 2005.

Autor: Dr. Altair Alberto Fáveroaltairfavero@gmail.com Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado do PPGEDU/UPF. Também escreveu e publicou reflexão “A construção de uma pedagogia da autonomia”: https://www.neipies.com/a-construcao-de-uma-pedagogia-da-autonomia/

Edição: A. R.

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