A importância da embalagem

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Em tempos de fake news, com certa facilidade nos enganam ou nos deixamos enganar ora pelo conteúdo ora pela embalagem, quando não por ambos. Em tempos de arrogâncias, de prepotências e intolerâncias, não são raros os casos de julgamentos e condenações baseadas apenas nas aparências.

Dizem que o importante não é a embalagem, mas o conteúdo. Na mesma direção, afirma-se que as aparências enganam. Os ditados populares carregam grande sabedoria, porém importa saber quando e como utilizá-los. Em muitos casos, nem a embalagem e nem o conteúdo nos enganam. Noutros, entretanto, podemos ser enganados ao mesmo tempo pelas aparências e também pelo conteúdo.

Com base apenas na embalagem e nas aparências, muitas vezes são feitos falsos julgamentos de conteúdos excelentes. Senão vejamos a história do humilde agricultor e do arrogante governante. 

Em sua simplicidade, um agricultor familiar que produzia alimentos agroecológicos decidiu presentear o prefeito. Ao ir à cidade, levou maçãs bem maduras, gigantes e saborosas. Queria agradar o mandatário local e foi até a prefeitura para entregar o presente. O agricultor era desconhecido do prefeito e trajava roupas marcadas pelo trabalho da roça.  Pôs as maçãs dentro de um saco sujo de terra e um tanto rasgado. Era o que ele tinha à disposição. Não imaginava que o destinatário poderia fixar sua atenção mais na embalagem do que naquilo que se encontrava dentro dela.

O agricultor estava movido pela nobre intenção de, ao presentear o prefeito, falar da importância de consumir alimentos saudáveis, livres de substâncias químicas que trouxessem danos à saúde das pessoas e do meio ambiente. Pretendia também que o governante criasse mecanismos para estimular a população a cultivar e consumir a fruta da longevidade.

Ao se aproximar do prefeito, o agricultor quis dar-lhe um abraço, demonstrando sua estima e cortesia. Porém, em sua empáfia ele bloqueou a primeira ação e todas as subsequentes. Abortou o diálogo e pediu que o agricultor se retirasse, dizendo que estava cheirando mal e que aquele gesto de querer entregar-lhe um saco sujo e rasgado, mesmo sem saber o que continha, configurava um desrespeito à sua autoridade.

Um pouco envergonhado e decepcionado com aquela reação, o agricultor retirou-se. Contudo, imediatamente pensou outra estratégia para fazer o prefeito provar a fruta, pois queria que seus objetivos fossem alcançados. Dirigiu-se até a mansão em que ele residia. Tocou o interfone e foi atendido por uma senhora humilde, da periferia da cidade, que ali trabalhava como doméstica. Explicou que queria presentear o prefeito com aquelas maçãs. A doméstica não parava de lhe agradecer pelo belo gesto. Sentindo-se confortado pela atitude da senhora, o agricultor voltou para sua casa.

A doméstica retirou daquela simples embalagem algumas das maçãs e colocou-as numa travessa de porcelana importada que o prefeito havia adquirido em sua última viagem ao exterior.

Quando chegou para o almoço, ficou maravilhado com as maçãs e antes mesmo da refeição provou uma delas. Gostou muito do sabor e perguntou onde a empregada havia comprado. Ela lhe disse: foi um agricultor que passou aqui e entregou de presente para o senhor. O prefeito, então, lembrou-se de sua deselegância com aquele trabalhador do campo e pensou consigo: ‘às vezes, as aparências enganam’. Porém, já era tarde! Perdeu a oportunidade de ser educado e de aprender com a sabedoria e a proposta do agricultor.

Além de diversas reflexões que podem ser feitas acerca dessa história específica, há múltiplas outras possíveis em torno da agroecologia, das formas de exercer o poder, das relações sociais e humanas, das aparências e das embalagens.

Em tempos de fake news, com certa facilidade nos enganam ou nos deixamos enganar ora pelo conteúdo ora pela embalagem, quando não por ambos. Em tempos de arrogâncias, de prepotências e intolerâncias, não são raros os casos de julgamentos e condenações baseadas apenas nas aparências.

Em tempos de consumismo exacerbado, as embalagens têm grande importância e facilitam muito o transporte de produtos e mercadorias. Porém, por outro lado, muitas vezes não são utilizadas com moderação e, no pós-consumo, não recebem o mais adequado destino. Não são recicladas, nem reaproveitadas e acabam produzindo graves impactos ambientais. Daí a importância não só de estimular a reutilização, senão também de adotar formas para reduzir o seu uso em vista de minimizar e evitar danos maiores à nossa Casa Comum. As reflexões e desafios nessa área são abundantes.

Igualmente sugestiva e sempre necessária é a reflexão sobre as aparências e os conteúdos humanos e humanizadores. A história do agricultor e do prefeito podem nos ajudar também nesse sentido.

Dito de outro modo, ou seja, em forma de questionamento: Quais aparências procuramos demonstrar em tempos de uso massificado das redes sociais? Que conteúdos temos a oferecer e que não cabem nos ambientes virtuais? Quais conteúdos e em que embalagens precisamos nos apresentar a nós mesmos e aos outros? Serão as falsas aparências e as embalagens importadas que mais importam?

Autor: Dirceu Benincá, Professor Universitário (UFSB e FURG). Também já publicou texto “Encontrei a resposta” no site: https://www.neipies.com/encontrei-a-resposta/

Edição: A. R.

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