Caros leitores, nesta coluna, temos a honra de contar com a colaboração do advogado criminalista Mateus Contessa de Almeida, profissional no campo do Direito e profundo olhar crítico sobre as interfaces entre legalidade, ética e comportamento social. Tivemos o privilégio de conhecê-lo por meio de um amigo em comum e, desde então, trabalhamos juntos no mesmo projeto de Júri Simulado na escola que leciono. Mateus demonstrou não apenas domínio técnico, mas também uma rara sensibilidade ao tratar de temas complexos com profundidade e ética.
Notem que, com sensibilidade e coragem, ele nos provoca a refletir sobre um dilema cada vez mais comum no cenário digital: quando seguir a lei já não basta. Em tempos em que influenciadores digitais arrastam multidões para práticas questionáveis — como o incentivo ao vício em apostas online —, seu texto levanta uma questão crucial: seria moralmente aceitável continuar calado diante do que é legal, mas eticamente duvidoso?
Sua análise, que vai além dos códigos e se ancora em valores, nos convida a pensar sobre os limites da influência, da responsabilidade social e da integridade profissional — temas urgentes num mundo em que a visibilidade, muitas vezes, se sobrepõe ao bom senso.
(Deise Bressan)
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“Parte-se da premissa de que nem toda conduta moralmente reprovável é juridicamente punível, destacando-se a importância da legalidade, da tipicidade e das garantias processuais como barreiras contra o punitivismo midiático e o justiçamento simbólico. A espetacularização da investigação, especialmente em casos envolvendo influenciadores digitais, serve como alerta para a erosão dos princípios fundamentais do processo penal em nome de uma suposta moral pública.
A recente CPI das Apostas Esportivas (ou das Bets) trouxe à tona mais do que suspeitas de corrupção no futebol e esquemas de manipulação de resultados. O que emergiu, de forma mais inquietante, foi um velho dilema com roupagem nova: até que ponto o que a sociedade moralmente reprova deve ser tratado como crime?
Em meio a manchetes espalhafatosas, julgamentos sumários e indignações impulsionadas por redes sociais, o debate jurídico cede lugar à pressão pública, que exige respostas rápidas e punições exemplares — ainda que à revelia do devido processo legal.
O senso comum, amparado por valores morais frequentemente legítimos, clama por justiça instantânea, por castigos duros, por culpados identificáveis. Mas o Direito Penal opera sob outro ritmo. Exige tipicidade, contraditório, presunção de inocência e respeito às garantias constitucionais. Essa tensão entre moral e legalidade não é nova, mas se agrava quando se transforma em política criminal moldada pela opinião pública. Afinal, nem tudo que é imoral é ilegal — e nem tudo que é legal se harmoniza com o sentimento popular de justiça.
A moral, como bússola coletiva, orienta sentimentos, tradições e repulsas. Ela é instável, subjetiva e mutável. Dita estigmas e estabelece parâmetros do que é ou não correto. O que hoje causa revolta, amanhã pode ser tolerado. O que uma comunidade condena, outra pode aceitar. E é nesse terreno instável que muitos acreditam ser razoável erigir critérios penais.
O problema é que, quando a moral passa a guiar o poder punitivo, abre-se um flanco perigoso para a seletividade, para o punitivismo emotivo e para decisões contaminadas mais por ressentimento do que por provas. Substitui-se o julgamento técnico pelo justiçamento popular — e o réu passa a ser culpado antes mesmo de ser acusado formalmente.
Essa lógica ganhou contornos ainda mais evidentes com a recente convocação de influenciadores à CPI, como no caso de Virginia Fonseca, chamada para prestar esclarecimentos sobre a promoção dos chamados jogos do tigrinho — modalidade de jogo de azar amplamente difundida nas redes sociais.
O que se viu foi menos uma oitiva de apuração e mais um espetáculo transmitido em tempo real: depoimentos transformados em memes, reações que viralizaram e manchetes que criminalizaram antes que qualquer juízo técnico fosse formulado. Nesse cenário, a espetacularização ofusca o devido processo e a própria finalidade investigativa da Comissão Parlamentar de Inquérito.
A reação pública à CPI das Bets ilustra bem essa espécie de contaminação moralista.
Parte expressiva da sociedade já elegeu culpados, exige punições exemplares e repudia qualquer tentativa de garantir o direito à ampla defesa. O problema é que muitas das condutas rotuladas como “vergonhosas” ou “antiéticas” não configuram crime algum. Outras, embora mereçam crítica social, exigem robustez probatória para ensejar responsabilização penal. Mas, quando o debate público se fecha à nuance jurídica e se abre à lógica do linchamento, perde-se o essencial: o compromisso com a legalidade.
O Direito Penal não foi criado para vingar a moral ofendida, mas para funcionar como instrumento de contenção do poder punitivo. Ele só pode agir quando há crime descrito em lei, prova suficiente e garantias processuais respeitadas. E é justamente esse arcabouço técnico que protege a todos nós — inclusive os inocentes — do arbítrio estatal e da fúria momentânea da coletividade.
Quando se admite que a moral substitua a legalidade, perde-se o eixo da previsibilidade jurídica e se joga com os direitos individuais como se fossem fichas descartáveis. No fim das contas, a aposta mais perigosa não é aquela feita em sites ou aplicativos — é a aposta que a sociedade faz ao abrir mão da legalidade em nome de uma moral pública mutável, imprecisa e, muitas vezes, instrumentalizada.
A linha que separa a crítica ética da persecução penal precisa ser respeitada. Porque, ao contrário da moral, o Direito deve ser estável, técnico e garantidor.
Num Estado Democrático de Direito, o que está em jogo não é apenas o destino de um influenciador, um jogador ou uma CPI — é a integridade do próprio sistema de justiça. E essa aposta, definitivamente, não pode ser feita no escuro”.
Autor: Mateus Contessa de Almeida, advogado criminalista
Autora: Deise Bressan. Também escreveu e publicou no site “O amor e o medo de amar”: www.neipies.com/o-amor-e-o-medo-de-amar/
Edição: A. R.