Sobre o Papel do Professor – um início de conversa

Estamos querendo entender como o professor compreende o seu papel e como sua concepção de docência pode interferir, ou não, na qualidade da educação.

-Olá, professor! Podemos conversar um pouco?

-Sim! Sobre o quê?

-Estamos analisando qual a compreensão que as professoras e os professores têm sobre seu papel no ensino.

-Tudo bem!

-Então, professor, qual seu papel?

-Dar aula!

-Não seria ensinar?

-Sim, meu papel é ensinar!

-E o que você faz para ensinar?

-Eu dou aula!

-E o que é dar aula, para você?

-Bem, eu chego na classe, falo sobre o assunto, pergunto se tem alguma dúvida, dou um exercício modelo, dou alguns exercícios de aplicação, tarefa de casa, e depois cobro na prova para ver se aprenderam!

-Onde você aprendeu esta metodologia de trabalho?

-Ih, agora você me pegou… (risos) Não me lembro… Acho que aprendi pela experiência como aluno, desde o Ensino Fundamental…

-Algum professor na Licenciatura chegou a ensinar formalmente esta metodologia?

-Não! Não me recordo.

-E fazendo do jeito que você descreveu, os alunos aprendem?

– Alguns sim, outros não…

-E isto não te incomoda?

-Incomoda um pouco, mas fazer o quê? Depende de cada aluno… A minha parte eu fiz: ensinei! Além disso, como você deve saber, há toda uma cobrança para cumprir o programa por parte dos gestores, coordenadores pedagógicos, colegas do ano seguinte, exames de avaliação externa, metas estabelecidas pelas diretorias de ensino, vestibulares…

-Em relação aos que não aprenderam, você, de fato, ensinou ou, a rigor, teve intenção de ensinar, mas ainda não ensinou?

-Você está dizendo que a culpa é minha?

-De forma alguma! Estamos querendo entender como o professor compreende o seu papel e como sua concepção de docência pode interferir, ou não, na qualidade da educação. Além do mais, culpa nos remete ao campo da moral, da eventual condenação pessoal. Preferimos falar em responsabilidade, que é do campo da ética, onde compreendemos os fenômenos em suas relações.

-Assim fica melhor! Mas, não temos de considerar a realidade socioeconômica do aluno, por exemplo?

-De fato, “o aluno é o aluno e suas circunstâncias” (Ortega y Gasset); é preciso considerar sua realidade, seu contexto, sua história de vida etc. O mesmo vale para o professor e a professora: há as circunstâncias todas do seu trabalho (aluno, classe, equipe, escola, família, território, sistema de ensino, sociedade), todavia há também a concepção, o entendimento que o professor tem de sua atividade, do seu papel!

-Está meio complicado…

-Tomemos, por exemplo, um elemento da realidade de trabalho do professor, a questão do número de alunos em sala de aula: ele é/está sendo o mesmo, independentemente da sua forma de pensar o seu papel, correto?

-Sim, é mais ou menos óbvio…

-Só que a maneira como o professor vai lidar com este dado de realidade, assim como tantos outros dados, depende da maneira como ele compreende o seu papel, correto?

-Não está claro…

-A realidade objetiva, num primeiro momento, não muda de acordo com a concepção que o professor tem de seu papel (40 alunos continuam sendo 40 alunos), mas a forma como ele pensa muda a maneira como vai lidar com a realidade! A realidade é a mesma, mas a maneira como o professor vai lidar com ela depende da concepção que tem.

Afinal, qual seu papel: simplesmente transmitir ou comprometer-se com a aprendizagem de todos?

Se entende que seu papel é simplesmente transmitir o conteúdo, ainda que de forma bem cuidada, criteriosa, vai se dar por satisfeito quando tiver transmitido o que estava previsto. Por outro lado, se ele entende que seu papel é fazer de tudo para que os alunos aprendam, não vai sossegar enquanto tiver alunos sem aprender. É como diz aquele interessante princípio, “aluno a gente não escolhe, aluno a gente acolhe” e trabalha a partir de sua realidade concreta, na direção da intencionalidade da escola. Nosso desejo é que a escola possa, cada vez mais, cumprir sua função social: aprendizagem efetiva, desenvolvimento humano pleno e alegria crítica! Estamos apenas querendo provocar uma reflexão crítica (Freire)!

-Como assim?

-Por detrás de toda prática, de toda ação humana consciente sempre há uma ideia, uma justificativa, uma teoriazinha, não é mesmo? Será que temos consciência de qual a teoria que está, efetivamente (não a concepção apenas desejada, mas aquela internalizada, em especial em função dos longos anos que passamos nos bancos escolares), por detrás da nossa prática em sala de aula? Será que não haveria uma outra forma de compreender (e internalizar) a atividade docente?

-Como assim?

-E se dar aula ou ensinar fosse entendido como comprometer-se em criar condições para o aluno aprender?

-Mas não é a mesma coisa?

-Veja bem, se entendemos que o papel do professor é criar condições para o aluno aprender, estamos assumindo que a tarefa da escola não é meramente transmitir o conhecimento, mas propiciar a aprendizagem. Então, se ainda não aprendeu, a tarefa do professor (pessoal e coletivamente) ainda não terminou!

-Mas isto não é colocar um peso muito grande nas costas do professor?

-Como dissemos antes, não temos a menor intenção de introjetar “culpa e má consciência” no professor! Todavia, também não desejamos poupá-lo de suas responsabilidades! Afinal, o professor pode responder por algo, ou é totalmente determinado a partir de “forças externas”?

-Acho que tem coisas pelas quais podemos responder, sim…

-O que estamos falando é que o professor não pode tudo, mas pode alguma coisa, e este poder pode ser ampliado se ele se qualificar e se articular (Saviani). Entendemos que, apesar dos limites e contradições, sempre há uma Zona de Autonomia Relativa-ZAR, algo que podemos fazer já, que está ao nosso alcance, na nossa governabilidade. O que temos em perspectiva, num primeiro momento, é fundamentalmente uma mudança de atitude, uma mudança de postura, que inclui a mudança de concepção (reforma do pensamento – Morin) e a consequente busca pelas mediações, pelos procedimentos adequados ao novo paradigma!

Entendemos que esta revisão de rota, esta postura contra-hegemônica, contra a lógica da desumanização, pode ser uma iniciativa que fortaleça o professor em sua identidade e potência, gerando um pouco de alegria, neste momento tão difícil de desmonte da educação! Apesar de tudo, e por tudo, continuamos acreditando que “Um Outro Mundo e Uma Outra Educação são Possíveis”!

-Gostei desta ideia!

-Nós também! (risos)

-Vou refletir mais sobre isso!

-Que coisa boa! Muito obrigado, por enquanto!

Observações:

1. Tendo em vista a enorme diversidade das escolas e dos educadores, das redes de ensino, das etapas e modalidades da educação, esta é apenas uma possibilidade de encaminhamento de um diálogo.

2. Há uma peculiaridade da função docente que dificulta muito a mudança da prática instrucionista (professor falando, falando, aluno escutando, escutando ou fingindo que escuta…): nós somos uma das poucas profissões em que os futuros profissionais têm uma longuíssima experiência prévia no futuro campo de atuação.

Quando começamos os primeiros estudos sobre a docência na Licenciatura, temos pelo menos 12 ou 15 anos de vivência no futuro campo profissional! É certo que “do outro lado”, qual seja, como aluno, mas no campo que exercerá a docência (a escola, a sala de aula). Todavia, como sabemos, forma também é conteúdo. Desta maneira, ao iniciarmos o estudo científico sobre a docência já estamos muito familiarizados com o campo de atuação, através de nossa (de)formação nos bancos escolares.

3. No atual estágio da civilização, a escola é um dos poucos espaços que nos restam para fazer um trabalho humanizador “em larga escala”. De um lado, tem um papel da maior relevância em termos Quantitativos, uma vez que praticamente todas as crianças estão na escola (e uma grande parcela da adolescência e da juventude) e por muitos anos.

Por outro lado, em termos Qualitativos, uma vez que as pessoas frequentam a escola não dos 40 aos 54 anos, mas numa fase absolutamente fundamental para o desenvolvimento humano, para a formação da personalidade, e ainda com a possibilidade de participarem de um trabalho com intencionalidade compartilhada, a partir de um Projeto Político-Pedagógico construído coletivamente.

4. Do ponto de vista da instituição, da escola, o que está em jogo?

a) Ter uma clara intencionalidade, expressa no Projeto Político-Pedagógico, que traga um conjunto de valores na perspectiva transformadora;

b) Ter algo para ensinar, ou melhor, ter algo para aluno aprender (considerado importante, relevante, de acordo com a intencionalidade maior e para aquela realidade e aquele ciclo de vida do aluno);

c) Professor querer, de fato, que aluno aprenda;

d) Professor criar as condições (as melhores possíveis) para que aluno aprenda os saberes necessários (cada um e todos os alunos).

5. Do ponto de vista do sistema de ensino, o que se espera? Que favoreça as condições de trabalho para a professora e para o professor: formação inicial e continuada, salário, plano de carreira, valorização social da atividade docente, autonomia didática, número de alunos adequado em sala de aula, quadro funcional completo da escola, gestão democrática, rede de apoio social, atendimento especializado para os alunos quando necessário, etc.

Autor: Prof. Celso dos Santos Vasconcellos.  Doutor em Educação pela USP, Mestre em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP, Pedagogo, Filósofo, pesquisador, escritor, conferencista, professor convidado de cursos de graduação e pós-graduação. Foi Professor (Educação Fundamental, Ensino Médio, Ensino Superior, Pós-Graduação), Orientador Educacional, Coordenador Pedagógico e Diretor de Escola. É consultor de secretarias de educação, responsável pelo Libertad – Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica.  celsovasconcellos@uol.com.br     www.celsovasconcellos.com.br

Edição: A. R.

Feminicídios: calar jamais

O triste Estado do Rio Grande do Sul: machista e misógino

I – TRISTES PASSOS 

Muitas foram as Marias assassinadas antes de haver o poder punitivo estatal contra estes crimes. Foram anos e anos de violação da vida feminina, com mulheres rebeldes queimadas pela Santa Inquisição.

Mesmo com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, mortes e mortes ocorreram. 

Tivemos o adultério no Código Penal. O homem podia rejeitar a esposa “adúltera”, enquanto ele frequentava bordéis e sustentava amantes. Adultério não é mais crime. Mas os homens continuam matando mulheres e namoradas, quando estas não se submetem à violência, maus tratos.

Em março de 2021, somos informados que “na pandemia, três mulheres foram vítimas de feminicídio por dia”.

Em agosto de 2021, o Rio Grande do Sul teve aumento de 225% no número de feminicídios. O Estado do Rio Grande do Sul divulgou dados da diminuição da violência em 2021, mas foi obrigado a mostrar que o número de feminicídios aumentou: 97 mulheres foram assassinadas, enquanto em 2020, foram 80, uma alta de 21%.

II – LEI MARIA DA PENHA

Segundo o governo do estado, entre as 97 mulheres assassinadas, apenas 10 tinham medida protetiva de urgência (MPU) – ou seja, praticamente a cada 10 vítimas, apenas uma estava sob o amparo da decisão judicial que obriga o afastamento do agressor, fruto da lei.

O Brasil só criou a Lei Maria da Penha após sofrer constrangimento internacional. Maria da Penha foi um exemplo de mulher humilhada e atacada brutalmente pelo marido que a deixou numa cadeira de rodas.

Em 2006, o projeto foi aprovado pela Câmara e pelo Senado e sancionado por Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente na época. A Lei 11.340 ganhou o apelido de Lei Maria da Penha — justa homenagem à mulher que se recusou a aceitar a inércia das instituições e, segundo alguns, “mudou o destino das brasileiras para sempre”. Não foi o que aconteceu. Os infortúnios diários comprovam que ainda se mata por gênero.

III – LEI DO FEMINICÍDIO

Em vigor há quase uma década, a Lei do Feminicídio (13.104/2015) prevê circunstância qualificadora do crime de homicídio e inclui o feminicídio no rol dos crimes hediondos. A lei considera o assassinato que envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher, reforçando os elementos orientadores da anterior Lei Maria da Penha.

Mesmo com decisões de afastamento, mulheres buscando socorro nas Delegacias, denunciando agressores e abusadores, homens alcançam as mulheres, em suas frágeis proteções.

Estudam-se mecanismos de haver um dispositivo que seja usado pelo agressor para que a mulher saiba de sua aproximação. As tecnologias devem servir às pessoas e não servir para ganhar com as pessoas.

Salientamos em conversas nas comunidades, nas palestras, nos Papos ao Vivo na Internet que as mulheres têm que denunciar e pedir ajuda à família e à sociedade para não serem alcançadas pelos assassinos em potencial.

III – BRUTALIDADE E INTOLERÂNCIA

Simone de Beauvoir tinha razão quando dizia que “toda opressão cria um estado de guerra”. E vai mais longe: “a opressão à quais mulheres são confinadas, de encarceramento no ambiente doméstico é um fator que vai gerar tensão na relação entre os gêneros”.

Marina Colasanti, a imortal da Academia Brasileira de Letras, que nos deixou há pouco produziu uma das crônicas citadas por toda a mídia séria para falar dela. Pinço o que segue:

“A gente se acostuma à violência, e aceitando a violência, que haja número para os mortos. E, aceitando os números, aceita não haver a paz. A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza para preservar a pele.”

Uma mulher de 32 anos foi perseguida e morta a tiros pelo ex-companheiro em frente a um hospital na cidade de São Francisco de Assis (RS), a 430 quilômetros de Porto Alegre. Foram seis tiros, socorrida, chega ao Hospital, e o machista psicopata persegue, dando mais seis tiros.

A disputa pela guarda foi garantida pelo Judiciário para a mãe, agora morta, e que foi assassinada brutal e selvagemente na frente do filho de seis anos. Não há o que comentar sobre o monstro assassino.

O que temos que fazer diante de tal caso é cobrar o cumprimento das leis, que a Justiça mande usar tornozeleira e tudo o que for possível de ser feito para salvaguardar a vida das mulheres. Que haja uma educação ao respeito, atacando o machismo e todas as formas de preconceitos.

O Monitor de Feminicídios no Brasil divulgou os dados atualizados de 2024, revelando um aumento alarmante nos casos de feminicídios em todo o país. Segundo os números mais recentes, foram registrados 750 feminicídios consumados e 1693 casos de feminicídios consumados e tentados até o momento.

IV – RIO GRANDE DO SUL

Os números, analisados pela equipe técnica da Lupa, levam a crer que a curva elevada pode reiterar em 2024: em 2021 foram 99 feminicídios, em 2022 foram 106, em 2023 foram 102, mantendo-se uma média de 8 feminicídios ao mês e 100 feminicídios ao ano no Rio Grande do Sul.

Proporcionalmente à população o Rio Grande do Sul, mostra-se um “locus” de violência e machismo exacerbados.

Na Literatura o nosso admirável João Simões Lopes Neto, no conto “No Manantial” relata o caso da moça, às vésperas de se casar, é “abordada” por um pretendente do qual tinha medo e pavor. Escapa do monstro que a quis tomar à força, corre e entra no manancial e o sujeito vai atrás. Ela morre e só se vê a rosa vermelha que tinha na orelha por sobre as águas turvas do lago, e ele morre aos poucos porque vai se afundando.

Ou seja, neste clássico de nossa literatura já temos um caso dramático, deveria ser lido e ensinado nas aulas de Literatura do nosso ensino médio.

– A ÚLTIMA CHAGA: SEIS FEMINICÍDIOS NA SEXTA FEIRA DA PAIXÃO

Cristo foi levado ao Calvário e morto. Tudo aos olhos do povo.

Já no Rio Grande do Sul, 2.025 anos depois, seis mulheres foram mortas barbaramente, enquanto a maior parte da população vivia um dia de “retiros, jejuns, rezas e cantos”.

Os assassinos não usaram lanças para dar o estoque de misericórdias, eram facas afiadas, trazidas para matar, jorrar o sangue da inocência nos lares de seis famílias.

Todos os casos o móvel era a vingança, o ciúme, o macho gaudério mostrando seu lado perverso, grotesco e selvagem. Nenhuma das mulheres tinha proteção porque não teriam sido ameaçadas até então.

Ou seja, não mais ameaçam, não mandam recado, eles vêm para matar. E mataram na sexta-feira santa da Paixão.

Centenas de familiares e amigos não tiveram Páscoa. Em vez de busca do ninho do coelho tiveram que ir a busca dos velórios. Todas as lágrimas derramadas não vão mover um passo dos assassinos.

O Estado, a começar pelo governo do Estado, as prefeituras, dado os casos graves de feminicídio no RS deve fazer um trabalho.

Uma manchete de uma semana atrás “festejava” a diminuição dos crimes desta espécie no RS. Mas a “boa nova” ficou não só manchada de sangue. Veio com uma dor mais intensa, nunca antes sentida.

Lembrando que tivemos o caso de três jovens de 13, 14, e 15 anos que tentaram matar uma professora em sala de aula.

Não sei o que falaram padres e pastores nas últimas horas. Espero que eles e a sociedade não se calem. A começar pelas autoridades.

VI – NÃO CALAR JAMAIS!

Este brado é recorrente cada vez que morre uma mulher assassinada por dezenas, centenas e até milhares, mas parece que estas vozes fazem pouco eco, como demostrei acima.

São vários artigos escritos, sem explosões de choros nos cemitérios, são notas e matérias nas TVs.

Hoje de sermos mais ousados e corajosos. Lutar sempre, calar jamais!

Autor: Adeli Sell. Também escreveu e publicou no site “Sobre o envelhecer”: www.neipies.com/sobre-o-envelhecer/

Edição: A. R.

Dê colo à sua criança e não um aparelho celular

Crianças necessitam de colo, não de celulares. Esta frase, tão simples e direta, carrega em si uma urgência silenciosa, um apelo que pulsa em cada olhar perdido de uma criança isolada diante de uma tela.

Em tempos em que o brilho do visor substitui o calor do abraço, é preciso lembrar que os pequenos não nasceram para o silêncio digital, mas para o som da vida ao redor — o canto dos passarinhos, o riso dos amiguinhos, o vento correndo entre os cabelos em uma tarde no quintal.

A infância é feita de toque, de presença, de cheiro de bolo saindo do forno e do barulho das folhas sob os pés. A infância precisa de olhos atentos, de mãos que acolhem, de braços que protegem — e não de notificações que apitam a cada distração. As crianças são frágeis como brotos recém-nascidos: se não forem cuidadas com paciência, amor e firmeza, podem se entortar diante das correntes mais fáceis.

Os celulares, com todo o seu apelo hipnótico, oferecem atalhos para um mundo onde a presença do outro se torna desnecessária. Mas o que parece conforto, na verdade é distância; o que parece entretenimento, muitas vezes é vazio.

Elas correm o risco de se tornarem reféns de algo que jamais poderá oferecer colo. Um aparelho frio, silencioso na alma, que jamais saberá acolher um choro, ouvir uma dúvida ou rir junto de uma travessura. E assim, pouco a pouco, a criança pode esquecer da vida lá fora — aquela onde o carrinho de plástico era um foguete, onde a boneca era filha, onde o quintal era floresta encantada. Pode esquecer do amigo que bate à porta, da bicicleta que range mas ainda corre, do cachorro que abana o rabo esperando uma aventura.

O mundo real, aquele que se toca e se sente, começa a desaparecer por detrás da tela, como se fosse um velho livro deixado na prateleira mais alta da memória.

Mais do que brinquedos ou telas, as crianças precisam viver próximas da natureza. Precisam sujar os pés de barro, correr atrás de borboletas, ouvir histórias sob a sombra de uma árvore, aprender a esperar a flor desabrochar. Precisam de pessoas — de gente que as ame, que saiba dizer “não” com doçura e “sim” com sabedoria. Gente que as abrace quando errarem, que lhes ensine que o erro não define quem somos, mas nos mostra onde precisamos crescer.

O colo que educa é o mesmo que consola. E só nele a criança aprende que amor de verdade não exige perfeição, mas entrega.

Nesse colo, ela vai aprendendo que só o bem merece nossa atenção. Que palavras duras, se forem ditas, devem ser pesadas com cuidado. Que bater não é resposta, que zombar é ferida. E que, quando alguém erra, é preciso mostrar o caminho certo com gentileza, sem repetir com outro a dor que um dia sofreu. As coisas más, uma vez reconhecidas, precisam ser deixadas para trás como folhas secas que o vento leva. Guardar rancores, repetir agressões, espalhar injustiças — tudo isso é peso demais para um coração tão pequeno.

As crianças precisam de histórias contadas no colo, e não de vídeos acelerados. Precisam de silêncio e de música, de perguntas sem pressa, de tempo para desenhar o mundo com suas próprias cores. Precisam de alguém que, mesmo no meio do caos do mundo moderno, saiba parar, olhar nos olhos e dizer: “Eu estou aqui com você. Sempre estarei.”

Que jamais esqueçamos: uma infância vivida entre telas pode produzir adultos que não saibam onde encontrar abrigo. Mas uma infância vivida entre abraços produz seres humanos inteiros, capazes de oferecer colo ao mundo. E no fim, talvez seja esse o nosso maior propósito: sermos colos uns para os outros, começando pelos pequenos.

O colo, este gesto tão antigo e essencial, é muito mais do que um abrigo físico. Ele é uma linguagem que dispensa palavras. No colo, a criança sente-se inteira, sente-se parte de algo maior, sente que existe um lugar no mundo reservado apenas para ela, onde está segura e amada. É ali que ela aprende sobre o tempo: o tempo de esperar, o tempo de confiar, o tempo de ser. É ali que o choro se transforma em suspiro, que o medo vira descanso, que a raiva encontra consolo.

No colo, a criança entende que o mundo pode ser um lugar bom, mesmo com suas tempestades.

Quando se troca esse gesto milenar por uma tela, por um celular entregue apressadamente para acalmar ou entreter, há uma quebra silenciosa de vínculo. Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de reconhecer que ela não tem braços. Um vídeo pode entreter, mas não acolhe. Um jogo pode distrair, mas não orienta. Uma chamada pode conectar, mas não sustenta. O colo ensina o mundo como ele é — imperfeito, imprevisível, mas repleto de amor quando bem cultivado. Já a tela, quando usada em excesso, ensina um mundo moldado para agradar, sem frustração, sem espera, sem verdade.

As crianças são espelhos do que recebem. Se recebem paciência, aprendem a ser pacientes. Se recebem presença, aprendem a estar presentes. Se recebem afeto, sabem como distribuí-lo. Mas se recebem ausência disfarçada de distração, correm o risco de crescer sem saber como lidar com suas próprias emoções, buscando nelas o mesmo alívio digital que um dia lhes foi oferecido para acalmar o choro ou evitar uma conversa difícil.

As emoções infantis não podem ser silenciadas com o botão de volume. Elas pedem nome, espaço, compreensão. Uma birra é muitas vezes um pedido mal formulado de atenção. Um choro longo pode ser uma tentativa de se fazer ouvir em meio ao barulho do dia. Uma pergunta repetida pode ser só uma maneira de confirmar: “Você ainda está aí comigo?” — e a resposta nunca deveria vir de um aplicativo.

E há ainda o mundo lá fora, esse mundo real que pulsa e se movimenta em folhas, em cheiros, em trilhas de formigas, em poças de lama que viram mares nas brincadeiras de faz-de-conta. As crianças precisam caminhar sobre a terra para sentirem que fazem parte dela. Precisam subir em árvores, cair e levantar, tropeçar e rir. Precisam das texturas da vida para formar suas próprias histórias. Histórias que não vêm prontas em vídeos de um minuto, mas que se escrevem lentamente, entre tardes de chuva e manhãs de sol.

E quando erram — porque todas erram — o que elas mais precisam não é de castigo seco ou de distanciamento, mas de um colo que as ensine.

Um colo firme, que mostre a consequência, mas não as abandone. Um colo que diga: “O que você fez não foi certo, mas eu continuo aqui. Vamos aprender juntos.” Isso é educar. Isso é criar seres humanos que sabem reconhecer o erro e transformá-lo em lição, em vez de carregá-lo como culpa.

A infância é o terreno onde tudo floresce. E sem o calor do colo, sem o som da voz próxima, sem o olhar atento, esse terreno pode secar. A criança que vive conectada ao mundo digital e desconectada do mundo afetivo pode crescer sem raízes, sem sombra, sem fruto.

Por isso, lembremo-nos: mais do que nunca, as crianças precisam de braços disponíveis, de tempo desarmado, de amor com presença. Que sejamos os colos de que elas precisam, hoje e sempre. Porque quando o colo é abrigo, a criança aprende a ser abrigo também — para si e para o mundo.

Nos tempos de agora, quando telas coloridas tomam conta das pequenas mãos, é urgente lembrar que o que uma criança mais precisa não é de pixels, mas de afeto. Ela precisa de um colo firme que a acolha quando chora, que a escute quando se perde em suas confusões internas, que a embale mesmo quando está em silêncio.

O celular não tem cheiro de mãe, nem o calor de um abraço. Ele não olha nos olhos, não interpreta lágrimas, não conhece o som do riso de um filho.

As crianças são frágeis, pequenas sementes lançadas no mundo. Se não forem regadas com amor verdadeiro, crescem sem saber a direção do sol. Correm o risco de se tornarem reféns de notificações, distraídas por uma realidade fabricada que as afasta da vida de verdade — aquela feita de terra no pé, de correr atrás de bola, de rir alto com os amigos. Se esquecem do mundo lá fora, dos brinquedos que inventam aventuras, dos cheiros de flores e da chuva na pele.

Elas precisam da presença dos adultos que as amam. Precisam viver perto da natureza e de pessoas que as façam sentir que pertencem, que são importantes mesmo quando erram. Porque errar faz parte do crescimento. E é nesse momento que o colo é mais necessário — não para proteger do erro, mas para ensinar que o erro não é um fim, e sim um começo para aprender. Ensinar que só o bem merece nossa atenção. Que as coisas más devem ser deixadas para trás, e jamais repetidas com ninguém.

O colo ensina sem palavras. É nele que a criança aprende a confiar. A sentir segurança para ser o que é. E a amar de volta.

Como escreveu o educador e médico Janusz Korczak:

“A criança não é um adulto em miniatura. Ela é um ser completo, com direitos, sentimentos e pensamentos próprios. Dê amor, não porque ela erra, mas porque ela precisa aprender a amar.”

Que nunca nos esqueçamos disso. Colo, afeto, presença: são os primeiros alimentos da alma de uma criança. Muito antes de qualquer tecnologia.

Autora: Rosângela Trajano. Também escreveu e publicou no site “Por que não devemos chamar palavrões na frente das crianças”: www.neipies.com/porque-nao-devemos-chamar-palavroes-na-frente-das-criancinhas/

Edição: A. R.

O Papa e os ateus

Depois da morte de Papa Francisco, muitas publicações exaltaram virtudes e qualidades suas na perspectiva humanizante, do ser humano que ele procurou ser em vida. Chamou-nos atenção este vídeo, postado em redes sociais, que relaciona o ateísmo com a reverência ao Papa Francisco.

Ao tomar conhecimento do vídeo, tomamos a liberdade de repercutí-lo sob uma ótica fundamentada na literatura.

Segue o link do vídeo “O papa e o ateu”:

Do ponto de vista literário, o autor usa antíteses, pois se considera ateu, nega a existência de Deus, mas afirma as virtudes humanas do Papa Francisco.

No caso em questão, destaca-se muito mais o caráter humanista do Papa e de seu ícone, o homem Francisco de Assis.

Douglas Pereto, o autor, demonstrou-se coerente e hiperbolizou (hipérbole) as virtudes do homem Francisco, enquanto repetia seu ateísmo.

Daí a repercussão, o impacto com público leitor.  Enfim, rompeu com as expectativas.

Parabéns pela ousadia e pela brilhante estratégia literária de brincar com as antíteses.

Sugestão de leitura: O Papa favorito dos ateus?  Como influência de Francisco foi além do catolicismo:  www.bbc.com/portuguese/articles/c5y4230n0vvo

Autor: Eládio Vilmar Weschenfelder. Também escreveu e publicou no site “Rios do céu e da terra”: www.neipies.com/rios-do-ceu-e-da-terra/

Edição: A. R.

O triste destino da biblioteca do Pescador de Livros

Quase uma década depois, o Grupo Ritornelo de Teatro, revive a história e presta reverência à memória de Valdelírio Nunes de Souza, encenando o espetáculo “Chicão: O Pescador de Livros. Chicão e o seu amor pelos livros fez, como poucos, justiça ao nosso título de Capital Nacional da Literatura.

Lamento pela desilusão, mas, invariavelmente, o destino das chamadas bibliotecas pessoais, quando morre o dono, não tem tido melhor sorte do que a dissolução do acervo acumulado, não raro a duras penas, ao longo dos anos, quer seja por doação, venda ou o caminho da reciclagem de resíduos (apenas um eufemismo para lixo).

Dois casos emblemáticos, locais e de 2016, aqui serão usados apenas como exemplos (há outros) e sem qualquer julgamento de valor, servem bem para ilustrar a assertiva do parágrafo anterior.

Um deles envolveu o destino da biblioteca organizada por Valdelírio Nunes de Souza, o papeleiro Chicão, falecido naquele ano, e o outro, que, assim como tantos, por ser de natureza estritamente privada, aqui farei referência apenas como biblioteca do professor A. F.

Créditos: Reprodução RBS TV

A chamada de capa de O NACIONAL, edição de 25 de novembro de 2016, “Do lixo ao lixo”, alertava para o fato de que os livros que formavam a biblioteca que havia sido organizada pelo papeleiro Chicão estavam sendo vendidos como sucata para custear despesas da família, que vivendo em vulnerabilidade social, em um galpão às margens da Rodovia BR 285, e sem alternativas, não via outro caminho que não a venda do acervo de 12 mil obras literárias e didáticas, que, garimpadas por Chicão no lixo ou recebidas por doação, ficavam à disposição dos estudantes e da população do bairro Valinhos.

As notícias sobre o caso Chicão repercutiram.

O professor Ironi Andrade abriu uma conta poupança “Pró-Biblioteca do Chicão” (CEF, Agencia 0494, Conta 4688-1, Operação 13) visando à arrecadação de fundos, e uma reunião coordenada pelo então secretário de Gestão da Prefeitura de Passo Fundo, Diorges Oliveira, com os secretários, na época, de Educação, Edemilson Brandão, e de Cultura, Pedro Almeida (atual prefeito), apoiados pela presidente da Academia Passo-Fundense de Letras, Dilse Corteze, resultou no encaixe da família em um programa de assistência social e a perspectiva de que um espaço físico de uma escola municipal na região seria ampliado para abrigar a biblioteca e um museu para preservar a memória do Chicão. Lamentavelmente, a ideia não prosperou e, em reportagem veiculada na edição de 29 de abril de 2022, O NACIONAL dava destaque que, da singular Biblioteca do Chicão, de 12 mil volumes, restaram cerca de 30 exemplares sob a guarda da filha Luciana Souza.

Quanto ao professor A. F., conheci-o por acaso no corredor de um supermercado local.

Ele se apresentou e disse que era o professor A. F. O nome soou familiar e eu perguntei: O Sr. não é o autor do livro “O Gaúcho dos Campos de Campos de Cima da Serra”. Ele disse sim, e eu informei que um exemplar desse livro, que ele havia dado ao sobrinho G. F., que fora meu colega na Escola Técnica de Agricultura de Viamão, em 1975, havia me acompanhado, não sei como, desde aquela época, tendo-o trazido a Passo Fundo e que, pelo assunto, esse fora incorporado ao acervo do Dr. Pedro Ari Veríssimo da Fonseca.

Ele ficou feliz em saber e me contou orgulhoso do sobrinho G. F., que havia virado empresário bem-sucedido na Serra Gaúcha, e que ele, professor A. F., vivia em Passo Fundo, onde o filho médico exercia a profissão. Até que, um dia, em O NACIONAL, vi o convite para uma missa em memória do professor A. F..

Havia passado pouco mais de um mês, chamou a minha atenção alguns livros sobre a mureta na frente de um prédio na Rua XV de Novembro. Olhei e segui o meu caminho. Duas semanas mais tarde, quando eu me dirigia, antes das 7h, para um exame no HSVP, na frente do mesmo prédio, junto aos containers de lixo, havia uma caixa de papelão cheia de livros. Por um lado, eu me aproximava e, pelo outro, um papeleiro e a sua gaiota. O papeleiro chegou antes. Pegou a caixa e despejou os livros na gaiota. Eu pedi para olhar.

O papeleiro foi gentil e começou a mostrar os livros. Acabei, por módicos R$ 20,00, levando três exemplares: Os Donos do Poder, do Raymundo Faoro, de 1958; Compendio de História do Rio Grande do Sul, do Amyr Borges Fortes, de 1968; e História Geral do Rio Grande do Sul – 1503 – 1957, de Arthur Ferreira Filho, também de 1958. Os demais seguiram o seu destino na gaiota do papeleiro. Abro os livros e vem a confirmação: nos exemplares constava o nome A. F.

Quase uma década depois, o Grupo Ritornelo de Teatro, revive a história e presta reverência à memória de Valdelírio Nunes de Souza, encenando o espetáculo “Chicão: O Pescador de Livros. Chicão e o seu amor pelos livros fez, como poucos, justiça ao nosso título de Capital Nacional da Literatura.

No espetáculo “Chicão, o Pescador de Livros”, os atores Miraldi Junior e Guto Pasini, apresentam uma grande história, talvez nunca antes contada. Como alquimistas, retirando pedaços e costurando os retalhos se transformam em recicladores de histórias e de grandes clássicos da literatura, recriam a jornada épica e torta de Valdelírio Nunes de Souza, o Seu Chicão. Venha viver essa experiência e descobrir como os livros podem mudar destinos! Siga o grupo Ritornelo de Teatro nas redes sociais: https://www.facebook.com/Ritornelo / https://www.instagram.com/gruporitornelo/

Fotos da matéria: Diogo Zanatta.

Autor: Gilberto Cunha. Também escreveu e publicou no site “O cemitério das almas fracassadas”: www.neipies.com/o-cemiterio-das-almas-fracassadas/

Edição: A. R.

Tu me encherás de alegria na tua presença

Peçamos ao Senhor que este breve tempo que se abre entre a páscoa do Papa e a escolha do novo sucessor de Pedro seja um tempo de discernimento, um conclave orante e confiante.

Esta declaração confiante que lemos na manhã desta última segunda-feira (21/04/2025) brota dos lábios de Pedro na manhã de pentecostes. Pedro coloca estas palavras do Salmo 16 (15) na boca de Jesus, como se fosse o sentimento de Jesus frente à sua paixão e morte. “Meu coração se alegra e minhas entranhas exultam, e minha carne repousa em segurança. Porque não me abandonas no túmulo, nem deixarás o teu fiel ver a sepultura. Tu me ensinarás o caminho da vida, cheio de alegria em tua presença” (v. 9-11).

Quando escutávamos Jesus ressuscitado pedindo que não tenhamos medo e anunciemos com alegria que Ele vive e nos espera nos caminhos periféricos da Galileia, ficamos sabendo que o nosso querido Papa Francisco havia feito sua Páscoa definitiva quando no Brasil ainda era madrugada. Depois de expressar ainda ontem seus votos de uma Páscoa feliz, seu corpo e seu espírito repousaram tranquilos, porque aquele que o olhou com misericórdia e o chamou, não deixaria seu corpo entregue à morte.

A notícia não nos surpreende, pois Francisco já completara 88 anos, e, embora fosse vitalício no ministério petrino, não era imortal, como nenhum ser humano o é.

A notícia também não nos entristece, porque uma vida tão honrada, tão bela, tão corajosa, tão sinodalmente cristã não deve deixar tristeza, mas gratidão. A notícia nos estimula a viver confiando-nos uns aos outros, sonhando e construindo uma Igreja em saída, sinodal e samaritana, com as marcas do Irmão e Peregrino, Crucificado e Ressuscitado.

Tenho ainda viva na lembrança aquela tarde fria chuvosa de março de 2013, quando a tradicional fumaça branca anunciava que a assembleia dos cardeais havia escolhido o Bispo de Roma, aquele que presidiria a Igreja na Caridade. Tremi de receio quando anunciaram o nome de Jorge Mário Bergólio, mas chorei de alegria quando deram a conhecer o nome que ele escolhera. Ninguém ousaria ostentar o nome de Francisco, o profeta revolucionário pela força da pobreza, sem assumir a sua preciosa herança.

E, desde então, foram treze anos de comoventes e sucessivas surpresas de Deus. A liberdade, a alegria e a ousadia profética, todas recheadas de gestos profundos e eloquentes que só podem nascer de uma existência radicalmente livre, marcaram e provocaram a Igreja. Seus pronunciamentos corajosos e as atitudes com as quais demonstrou que, diante da opressão, do sofrimento e das injustiças o Papa “tem lado” causaram calafrios em alguns cristãos e cidadãos, mas esperança em muitos outros.

É possível que sua páscoa traga um alívio pouco evangélico a quem desejou que o Papa renunciasse e torceu morbidamente pela sua morte. E eu digo que, de fato, Francisco renunciou! Renunciou à ostentação mundana, ao cômodo isolamento palaciano, ao farisaico distanciamento da vida concreta, à cínica indiferença frente aos dramas humanos e sociais, à estéril pureza das mãos que fogem ao serviço solidário, ao encastelamento em doutrinas abstratas e genéricas… Mas o Papa não renunciou a um ministério vazado no Evangelho de Jesus, a uma vida honradamente humana, capaz de mergulhar na vulnerabilidade e exercitar a solidariedade e a acolhida.

Peçamos ao Senhor que este breve tempo que se abre entre a páscoa do Papa e a escolha do novo sucessor de Pedro seja um tempo de discernimento, um conclave orante e confiante. Mas que seja também um tempo sem chaves nem muros, sem competições e sem medo de escutar o que o Espírito à Igreja, em vista de escolher um homem que, acolhendo a herança de Francisco e dos últimos papas, nos mantenha criativamente fiéis ao Evangelho da alegria e do serviço.

 “Desarmar o coração é um gesto que compromete a todos, do primeiro ao último, do pequeno ao grande, do rico ao pobre. Por vezes, é suficiente algo simples como um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito”, pois a paz não nasce dos acordos selados nos escritórios”. (Papa Francisco)

Leia mais: www.neipies.com/desarmar-o-coracao-e-reconstruir-a-paz/

Autor: + Itacir Brassiani msf. Bispo de Santa Cruz do Sul. Também escreveu e publicou no site “Desarmar o coração e reconstruir a paz”: www.neipies.com/desarmar-o-coracao-e-reconstruir-a-paz/

Edição: A. R.

O castelo de cartas marcadas da educação

A prova não é um instrumento de justiça, mas um mecanismo de exclusão. Reforça desigualdades, perpetua privilégios e transforma a educação num castelo de cartas marcadas — cujo desfecho, qualquer um com um mínimo de lucidez é capaz de antecipar.

“Prova”. Essa palavra tem rondado meus pensamentos nas últimas semanas. Visualizo-a como uma placa de néon pulsante, anunciando que algo está fora do lugar. Prova para quê? Para quem? Provar o quê — e por quê?

Sou professor de Filosofia. Desde que entrei para o ensino público, lecionando nos anos finais do fundamental, nunca apliquei provas. Minhas avaliações eram feitas por meio de resumos no caderno e outras atividades escritas, que os alunos podiam realizar ao longo de um mês, com tempo para pesquisar e refletir.

Era uma logística complicada — afinal, temos apenas uma aula semanal —, mas funcionava. Ao corrigir os trabalhos, aproveitava para revisar os cadernos como um todo, observando o envolvimento real de cada estudante com os conteúdos.

Este ano, decidi experimentar o formato tradicional. Organizei tudo: quatro aulas de conteúdo, uma de prova e, depois, um período livre como recompensa.

Parecia simples. Mas a vida, como sempre, detesta planos meticulosos — e logo comecei a me incomodar. Em vários sentidos.

O primeiro incômodo veio da previsibilidade. Antes mesmo de aplicar as provas, eu já sabia quem se sairia bem. Cartas marcadas. Consegui até prever, com certa precisão, a nota de cada um dos bons alunos.

O segundo desconforto surgiu mais sutilmente, mas logo se tornou claro: a prova não ensina nada. Serve apenas para confirmar o que já sabemos sobre os estudantes. Não acrescenta desafios aos mais preparados nem oferece oportunidade de avanço aos que mais precisam.

O terceiro problema é prático. Com uma aula por semana, a aplicação de provas é inviável. Façamos as contas: 28 turmas, 22 alunos em cada, totalizando 616 provas. Quem corrige tudo isso? E, mesmo que o tempo exista, vale o esforço? Francamente, duvido.

No fim, confirmei aquilo que já intuía: provas não valem a pena. Mas precisava sentir na pele. Sou do tipo que prefere a experiência direta, tirar minhas próprias conclusões.

Aqueles que ainda defendem a ideia de que a prova é um retrato fiel da capacidade dos alunos ignoram — ou fingem ignorar — as brutais desigualdades sociais do Brasil. Não estamos no mesmo ponto de partida. Enquanto alguns navegam em barcos confortáveis, a maioria segue a nado, lutando contra a corrente.

Nesse cenário, a prova não é um instrumento de justiça, mas um mecanismo de exclusão. Reforça desigualdades, perpetua privilégios e transforma a educação num castelo de cartas marcadas — cujo desfecho, qualquer um com um mínimo de lucidez é capaz de antecipar.

Autor: Aleixo da Rosa. Também escreveu e publicou no site “Um professor fracassado”: www.neipies.com/um-professor-fracassado/

Edição: A. R.

A lógica excesso-pobreza e a formação docente

O excesso de controle, de burocratização, de autoritarismo, de instrumentalização, de acusações, de soluções midiáticas, de produtividade, assim como a pobreza das práticas, das políticas educativas, dos programas de formação de professores, das práticas pedagógicas, das práticas associativas docentes, das práticas solidárias e colaborativas produzem formas de barbárie e processos de barbarização que contaminam os tempos e espaços escolares e os próprios sujeitos envolvidos.

Reli recentemente um artigo publicado há mais de um quarto de século do professor e pesquisador português António Nóvoa (1999), intitulado “Os professores na virada do milênio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas”.

Suas reflexões são assertivas na denúncia da “lógica excesso-pobreza”: de um lado o excesso dos discursos, da retórica política, das linguagens dos especialistas, do discurso científico-educacional, das “vozes” dos professores; do outro lado, está a pobreza das práticas, das políticas educativas, dos programas de formação de professores, das práticas pedagógicas, das práticas associativas docentes.

Interessante notar que o excesso se dá no âmbito das palavras, na multiplicação de discursos, no exagero da retórica, na infinidade dos que falam em nome dos professores; a pobreza, por sua vez, apresenta-se no âmbito da prática, na efetivação das políticas educativas, na execução de programas de formação de professores bem planejados e condizentes com a realidade, no fazer das práticas pedagógicas e na capacidade de mobilizar práticas associativas entre os docentes.

O dito popular “falar é fácil, fazer é mais difícil e complicado” traduz, de certa forma, essa lógica excesso-pobreza”.

Não se trata aqui de dizer que há uma oposição entre “discursos” e práticas”, ou de que um nega completamente o outro, ou ainda, que só deveria ter “práticas” e que estas seriam melhores sem os “discursos”.

Conforme argumenta Nóvoa (1999, p.13), os “discursos induzem comportamento e prescrevem atitudes razoáveis e correctas” bem como “constroem uma ideia da profissão docente que, muitas vezes, não corresponde à intencionalidade declarada”. Assim, presencia-se o excesso de retórica política em prol da importância dos professores para promover o civismo e a formação dos profissionais para mercado de trabalho, ao mesmo tempo que as condições de trabalho de remuneração desses mesmos professores são cada vez mais precarizadas.

A pobreza das políticas educativas se faz sentir todos os dias, não só nas condições de trabalho e na péssima remuneração, mas também na forma como são frequentemente atacados os professores como sendo mal formados, medíocres ou ideologicamente doutrinadores.

Instaura-se um círculo vicioso de forma que os cursos de formação inicial de professores (licenciaturas) não se tornam mais atrativos para jovens que tem um bom desempenho escolar. Estes escolhem outras profissões mais rentáveis e com maior status social. Por consequência, os poucos alunos que ainda optam pelos cursos de licenciatura, além de possuírem profundas e visíveis lacunas em sua formação de educação básica, estão sobrecarregados por uma longa e mal remunerada jornada de trabalho fazendo com que muitos deles desistam de seus cursos ou, quando conseguem chegar até a formatura, carregam consigo a marca de uma precária formação.

A fragilidade decorrente do círculo vicioso da formação produzida nas instituições universitárias, contraposta às exigências de que a educação tem de preparar profissionais de alto performance para o mercado de trabalho abre espaço para o excesso dos discursos dos especialistas ligados aos organismos internacionais que passam a semear soluções prospectivas mágicas com linguagens sedutoras.

“Sociedade educativa”, “sociedade aprendente”, “sociedade do conhecimento”, “sociedade da inovação”, “sociedade criativa”, “educação tecnológica”, “aprendizagem baseada em problemas” são algumas das promessas que se fazem presentes nos documentos destes organismos e que inflacionam seu papel de protagonistas para induzir ou ditar as agendas das políticas educacionais.

Embora tais documentos explicitem a “centralidade dos professores” dizendo que é necessário “trazer outra vez os professores no centro dos processos sociais ou econômicos”; “os professores têm de voltar para o centro das estratégias culturais”, “os professores são os profissionais mais relevantes na construção da sociedade do futuro”, “os professores estão no coração das mudanças” (OCDE,1998), são especialistas, a maioria dos quais não possui formação em educação, que ditam como devem ser esses professores, como deve ser sua formação e quais deverão ser suas características.

Na prescrição de tais especialistas, a educação tem de estar centrada em “sistemas rigorosos de avaliação” (“acreditação” é o nome utilizado nos documentos) a fim de garantir a qualidade educativa. Assim, denuncia Nóvoa (1999, p.14), “consolida-se um ‘mercado da formação’, ao mesmo tempo que se vai perdendo o sentido da reflexão experiencial e da partilha de saberes profissionais”. A formação tornou-se negócio para enriquecer grupos econômicos que usam a formação (treinamento) de professores uma forma de ganhar muito dinheiro, inclusive com recursos públicos.

A lógica excesso-pobreza também tem sua materialidade na tensão entre pesquisadores e professores na educação básica.

O crescimento da pós-graduação no Brasil nas últimas duas décadas, impulsionadas pelas políticas governamentais implantadas, de modo especial pela Capes, fez com que milhares de investigadores na área da educação passassem a produzir uma quantidade expressiva de dissertações, teses, artigos, coletâneas e trabalhos científicos apresentados em dezenas de eventos altamente reconhecidos pela comunidade científica. São pesquisas que problematizam temáticas recorrentes no campo da formação de professores e que certamente poderiam trazer diversas contribuições para o campo das práticas. No entanto, aqui também se faz presente os “excessos” e as “pobrezas”.

Excesso de produtividade dos pesquisadores destinada a dar conta das exigências de avaliação da Capes; pobreza na apropriação desta produção por parte dos professores que estão no cotidiano das escolas públicas da educação básica que se veem cada vez mais atarefados, sem tempo para estudar e refletir sobre suas práticas; excessos de “responsabilização” dos professores pelo péssimo desempenho dos alunos; pobreza nos investimentos públicos para a formação de professores das escolas públicas; excessos de “mal-estar” docente que se sente “refém da má qualidade de ensino que ele próprio recebeu” (Zagury, 2006); pobreza na forma simplificada como os mercenários da educação apresentam as soluções para enfrentar a formação de professores; excessos de individualismo e competição; pobreza de práticas solidárias e cooperativas de estudo e de planejamento; excessos de plataformas digitais e soluções midiáticas; pobreza de estudos coletivos e interações coma comunidade escolar.

No fio argumentativo deste texto, acompanhando os passos de Nóvoa (1999), é possível dizer que tanto o excesso de controle, de burocratização, de autoritarismo, de instrumentalização, de acusações, de soluções midiáticas, de produtividade, assim como a pobreza das práticas, das políticas educativas, dos programas de formação de professores, das práticas pedagógicas, das práticas associativas docentes, das práticas solidárias e colaborativas produzem certas formas de barbárie e processos de barbarização que contaminam os tempos e espaços escolares e os próprios sujeitos envolvidos.

Para além de encontrar culpados ou de naturalizar as problemáticas complexas do Ensino Superior e da Educação Básica, torna-se importante compreender os processos de contradições que vive o docente universitário e o professor da educação básica na lógica excesso-pobreza dos tempos atuais.

Como o professor percebe estas contradições? De que forma ele pode enfrentá-las? Que estratégias se mostrariam promissoras para contornar ou ultrapassar tais contradições? Existem possibilidades? Tratarei destas questões num próximo escrito.

 
Referências:

NÓVOA, António. O professor na vidada do milênio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas. Educação e Pesquisa. São Paulo, v.25, n.1, p.11-20, jan./jun, 1999.

ZAGURY, Tania. O professor refém. 4 ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Autor: Altair Alberto Fáveroaltairfavero@gmail.com.br Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado em Educação da UPF. Também escreveu e publicou no site “A formação da autonomia discente e o papel da autoridade docente”: www.neipies.com/a-formacao-da-autonomia-discente-e-o-papel-da-autoridade-docente/

Edição: A. R.

Ignorância e envelhecimento

Geralmente, por perdermos nossa agilidade, entregamos nosso poder. Assim, cada vez mais nossa presença é menos solicitada.

A gente paga o preço da ignorância. Se de repente, ao mexer com o controle do ar, a gente tocar num dos possíveis SINAIS pode aparecer uma indicação dos graus de outros países. A dificuldade está feita. Como fazer? Chamei o técnico e paguei o serviço.  Era somente desligar o aparelho e fazer retornar ao nosso sistema de graduação da temperatura. Paguei o preço de minha ignorância. Assim é na vida: paga-se muito por não saber.

Muito mais se perde por não saber ler, por não saber dirigir, por não saber cozinhar, por não saber lidar com novas tecnologias, como não estar atualizado na recepção de sinais da internet, por não saber lidar com a palavra, por perder a agilidade mental, por ignorar o valor dos outros. Enfim, muito perdemos por desconhecimento ou até por limites de caráter.

Diversos são os caminhos para sanar nossa deficiência. O mais comum na terceira idade é participar de grupos e aí buscar nossas deficiências ou buscar junto aos familiares o auxílio no domínio dos meios para melhorar nosso poder de comunicação. É muito comum perder o poder de comunicação em razão de limites naturais causados pelo avanço da idade e nos acomodamos sem ao menos dar alguns passos ainda que claudicantes. Por outro lado, perdemos até recursos por começarmos a ficar de lado de tudo.

Leia também: www.neipies.com/sobre-o-envelhecer/

Perdemos nosso poder mental ainda mais ao ficarmos de lado do mundo que nos abana e nós aí ficamos perdidos na estrada da vida. Geralmente, por perdermos nossa agilidade, entregamos nosso poder. Assim, cada vez mais nossa presença é menos solicitada. É verdade, muitos idosos têm a sorte de ter filhos pacientes e amigos a ajudar na superação de nossos naturais limites.

O mundo gira cada vez mais com auxílio de novos meios de comunicação e nós, por nossa fragilidade, podemos perder o compasso da vida. Assim, paguei cinquenta pilas por não saber reverter o modo de funcionar o ar condicionado. O técnico veio e, num só movimento, levou meus pilas. Meu ar tem um botão estrangeiro e eu ainda falo português.

Autor: Agostinho Both. Também escreveu e publicou no site crônica “Conflitos e mudanças”: www.neipies.com/conflitos-e-mudancas/

Edição: A. R.

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