Músicas impróprias?!

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Enquanto isso, os verdadeiros dramas da educação — escolas precárias, professores sobrecarregados, insegurança crescente — seguem ignorados. A tática é velha: transfere-se a responsabilidade para o professor, transforma-se o educador em culpado por um cenário que ele não criou.

Desde pequeno, cultivo uma admiração profunda pela música clássica. Com o tempo, meu universo musical se expandiu para o rock, a ópera, o jazz, o blues e a nossa MPB. Admito, sem rodeios, que não tenho apreço particular pelo funk ou pelo sertanejo — ainda que, neste último, reconheça méritos em algumas composições, não o suficiente para que integrem minha playlist habitual.

Estudei piano na juventude e cresci ouvindo meu irmão mais velho tocar violão em bandas. Participei de corais, aprendi os rudimentos da teoria musical e, confesso com certo embaraço, até me aventurei a compor algumas peças. Como sou formado em Filosofia, era natural que meu interesse se estendesse à história e à estética da música.

Não me considero músico, mas estudei o suficiente para construir uma opinião fundamentada sobre o tema. Soma-se a isso minha vivência como professor — o que me dá, imagino, algum respaldo, ao menos para refletir com responsabilidade sobre o assunto.

Foi, portanto, com surpresa e perplexidade que recebi a notícia da aprovação do projeto de lei nº 9/2025, pela Câmara de Vereadores de Passo Fundo. Com 13 votos favoráveis e 6 contrários, o texto propõe proibir a execução de músicas consideradas “impróprias” em escolas e eventos voltados a crianças e adolescentes.

À primeira vista, pode parecer uma medida sensata. Mas não se deixe enganar: trata-se de uma encenação, uma cortina de fumaça. Um número de ilusionismo político.

Ato I: O que é “impróprio”?

Não existem critérios objetivos para definir o que seria uma “música imprópria”. Não me refiro apenas ao funk com letras explícitas. Tomemos, por exemplo, Ajoelha e Chora, do grupo Tchê Garotos — uma canção amplamente conhecida, que romantiza a violência contra a mulher. Nunca vi campanhas ou projetos buscando afastá-la das crianças.

E quanto às obras que tratam de temas difíceis — como guerra, crime ou sofrimento — sem exaltá-los, mas com intenção artística ou crítica? Quem será o responsável por essa triagem? Quem assumirá o papel de juiz da arte? Estamos dispostos a flertar com a censura sob o pretexto de proteção?

Ato II: O problema não está na escola

Outro equívoco do projeto é sua desconexão com a realidade educacional. Nas salas de aula, já há um cuidado natural para que músicas com conteúdo ofensivo não sejam utilizadas. Os professores conhecem bem os limites pedagógicos e sabem filtrar o que entra ou não em seu ambiente de trabalho. Muitos, inclusive, já demonstram reservas em relação a determinados estilos.

Portanto, trata-se de uma medida redundante. Tenta-se legislar sobre algo que, na prática, já é evitado. E mais: parte-se da suposição equivocada de que a escola é a principal fonte de exposição a tais conteúdos. Na verdade, os alunos já chegam com seus gostos formados, consumindo música em casa, no celular, nas redes — muitas vezes com a anuência, ou ao menos a tolerância, dos próprios responsáveis.

Se dependesse de nós, professores, os estudantes seriam fãs de Bach, Beethoven ou Debussy. Mas não é assim que o mundo funciona — e legislar como se fosse apenas empobrece o debate.

Ato III: O custo da encenação

E quanto nos custa esse espetáculo? Cada vereador recebe um salário superior a R$ 13 mil mensais  – e não é para propor leis como essa: vagas, inócuas, de eficácia duvidosa. Mais uma vez, recursos públicos são consumidos para produzir fumaça.

Tudo isso em nome de uma suposta moralidade que mais parece marketing político. O projeto não resolve problemas reais — apenas finge combatê-los. É um gesto performático, não uma política pública. E, como aprendi ao longo dos anos, intenções bonitas podem ser o disfarce mais perigoso quando desviam o olhar do que realmente importa.

Enquanto isso, os verdadeiros dramas da educação — escolas precárias, professores sobrecarregados, insegurança crescente — seguem ignorados. A tática é velha: transfere-se a responsabilidade para o professor, transforma-se o educador em culpado por um cenário que ele não criou.

O jogo é claro: usam professores como bodes expiatórios enquanto soterram os problemas reais da educação (salários baixos, burocracia asfixiante, violência crescente). Resta a quem ainda tem vergonha na cara fazer como na música que ninguém ousa proibir: “ajoelha e chora”. Porque a verdadeira “música imprópria” é a que toca na política — e deveria envergonhar muito mais do que qualquer funk.

Autor: Aleixo da Rosa. Também escreveu e publicou no site “Professores não sabem nada”: www.neipies.com/professores-nao-sabem-nada/

Edição: A. R.

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