No tempo em que os machos eram apenas fracos

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A série ‘Adolescência’ mostra como o alvo de machos que atraem os outros para odiar mulheres é cada vez mais o jovem e até as crianças.

Em dois veraneios, no começo dos anos 2000, fiquei uma semana no litoral norte do Rio Grande do Sul para escrever crônicas diárias, publicadas no jornal Zero Hora, sobre personagens que moram perto do mar.

Falei com casais de dançarinos de um baile no Curumim, com um pescador de Magistério que tomou mate com a famosa maconha da lata, com solitários que nunca saíam de onde moravam.

E encontrei uma turma de guris da Serra gaúcha, todos em torno de um carro com caixas de som no bagageiro, que infernizava a vida dos veranistas. Estacionavam no calçadão, abriam a tampa e ligavam as caixas a todo volume. Pagode e música gaúcha.

Perguntei a um deles se usavam aquele equipamento sem constrangimento e ele me disse: ‘Para ver se a gente pega alguma guria’. Mas a barulheira funcionava? Ele foi sincero: ‘Não funciona com a gente, porque somos fracos’.

Guris fracos, é como eles se definiam. Fracos para levar adiante uma abordagem, um galanteio, uma conversa de veranista. O que o guri branquela dizia era que se considerava fora do padrão dos conquistadores bronzeados de Capão. E admitia que era fraco.

Sempre foi assim, por décadas, para muitos homens, e a vida continuava. Até que um dia os machos fracos passaram a ser perturbados por militantes e por teorias do machismo.

E surgiu, em meio a homens do movimento red pill (pílula vermelha), que temem e odeiam mulheres, a tese ‘científica’ da conspiração do 80/20, que aparece agora na série Adolescência, da Netflix.

Os machos inseguros deram suporte de ‘ciência’ estatística à situação que enfrentam como homens fracos: 80% das mulheres querem apenas 20% dos homens. Porque esses 20% são os mais sedutores, mais fortes, mais belos, mais ricos, mais inteligentes ou, de acordo com Darwin, os mais aptos.

Os homens que eram apenas fracos agora são perturbados emocionalmente por se considerarem invisíveis ou repulsivos para 80% das mulheres. E transmitem essa fragilização para crianças e adolescentes, que passam a agir com as mesmas atitudes cruéis dos adultos. É o que mostra a assustadora e comovente série da Netflix, logo no começo.

O guri fraco da Serra gaúcha, que ria da própria fraqueza, ainda existe, mas o mundo em que ele vive agora, como adulto, já não é mais o mesmo lá do começo dos anos 2000. Muito menos o do século 20.

A internet transformou homens fracos e mesmo os machos preconceituosos e violentos, que sempre existiram e matavam em nome da honra, em sujeitos ainda mais brutalizados e coletivizados pelo sentimento de inferioridade e rejeição. Por isso eles se organizam em turmas nas redes sociais.

É um mundo que os mais maduros quase não entendem direito. Todos já se sentiram fracos para ‘pegar’ gurias, como os machos diziam. Tivemos amigos fracos na turma. Debochamos dos fracos que conhecemos na adolescência e juventude. Mas os fracos não odiavam, agrediam e matavam como agora, ‘cientificamente’, com método e com sentido de grupo social.

Ser fraco, nesses tempos de machos organizados na internet como homens fragilizados pela tentativa de imposição da própria macheza, significa ser deliberadamente violento, ou a caminho de se transformar em alguém que pode bater e matar.

As fraquezas do século 21 não são mais as mesmas de antes, porque os fracos se organizaram para trocar impressões e receitas de como enfrentar a indiferença e o poder das mulheres. Eles tentam politizar e dar sentido às suas fraquezas.

A culpa pelo insucesso dos homens fracos passa a ser transferida para as mulheres que os desprezam. Elas são vistas como abusadoras de sentimentos, oportunistas, esnobes, arrogantes, insensíveis. Ideias fascistas se misturam, por convergência, a atitudes machistas.

Assim surgem e se organizam os homens do movimento red pill, dos machos pretensamente espertos que se defendem de mulheres e dizem não depender delas, porque não desejam ser manipulados por aproveitadoras.

O homem fraco precisa estar organizado em matilhas para fingir que se sente forte. A repórter Adriana Negreiros, do UOL, descobriu que um dos nichos que mais crescem na área da advocacia especializada no Brasil é o dos homens.

Sim, há advogados especializados em homens. Em causas que envolvem a Lei Maria da Penha e delitos dessa área. O Direito se especializou para lidar com os machos, não em conflitos comuns e da natureza dos relacionamentos, mas com casos de violência, ameaça e mortes.

Há mercados em todas as frentes. Se possível, o homem fraco deve se submeter a um coach que o treinará para ser odiador de mulheres. Deve ver tutoriais. Crianças são o novo alvo desses treinadores e influenciadores. Professoras sabem muito bem do que estamos falando.

Crianças são orientadas a ter raiva de mulheres e, numa etapa seguinte, a evitar relacionamentos e sexo. São os celibatários “incels“, também citados na série. Com 12, 13, 14 anos, são programados para não pensar em beijar e não tocar em mulheres. Antes da frustração de serem rejeitados.

O macho atormentando fica ainda mais precocemente fraco, sabendo que agora não basta abrir a tampa do bagageiro e exibir o som potente, que já não significa mais nada, ou expressa apenas impotência no seu mais amplo significado.

FONTE: Esta reflexão foi originalmente publicada em  https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2025/03/no-tempo-em-que-os-machos-eram-apenas-fracos/

Autor: Moisés Mendes. Também escreveu e publicou no site “O genocídio e o saber”: www.neipies.com/o-genocidio-e-o-saber/

Edição: A. R.

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