Não serei poeta de um mundo caduco. /Também não cantarei o mundo futuro./Estou preso à vida e olho meus companheiros. /Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Mas e o humor! (Carlos Drummond de Andrade)
(Por Eládio Vilmar Weschenfelder)
Até o início da adolescência, Wherther Brado viveu nas veredas do rio Uruguai, fronteira com a Argentina. Eventualmente, seu pai o levava para a outra margem. As lanchas iam e vinham lotadas com brasileiros e produtos de consumo muito baratos, como azeite de oliva, farinha de trigo, Licor de los 8 Hermanos, pão de gajeta, alfajores, croissants, vinhos, entre otras cosas no más. O pai se justificava:
– A farinha argentina é coisa fina, meu filho!
Na outra margem do rio Uruguai, havia semelhanças e diferenças entre as Línguas Portuguesa e Espanhola, considerando, por tabela, costumes, temperos, aromas, ritmos musicais e danças. Os bailes e jogos de futebol, tanto do lado de lá, como de cá, pareciam batalhas. Melhor era não ir e andar pelas veredas de cá.
Ainda menino, Wherther se deleitava, ouvindo as potentes emissoras radiofônicas uruguaias e argentinas, em especial a Rádio Nacional Buenos Aires 870 AM. Diziam que suas ondas vinham pelo grande rio Uruguai. E como vinham! Eram de natureza esportiva, política, cultural e religiosa. Ouviam-se esportistas, peronistas, generais, padres e pastores. Assim o curioso Wherther conheceu termos como tango, chamamés, milongas, bandoneon, descamisados e nomes como Carlos Gardel, Juan Perón, Evita, Che Guevara, Malvinas! E tudo valia a pena.
Nascido no Vale das Borboletas Multicores, Wherther vivenciou um verdadeiro divisor de águas temáticas: disputas eleitorais e polêmicas religiosas. Não sabia quem dominava a situação, se os políticos ou religiosos. Lembra que em 1963, depois de uma fumacinha branca na Capela Sistina, o eleito foi o Papa João XXIII. A mãe dele tinha por sobrenome Montini. Festa do Vale das Borboletas, especialmente entre os familiares. Tanto foi que, na escolinha rural, colegas do Wherther eram tratados como santinhos. Mas quê!
Metido a Blau Nunes, Wherther gravou tudo na memória. Lembra que até cães e gatos eram nominados como Jango, Brizola, Vassourinha (Jânio Quadros), João XXIII, JK, Evita, Coronel Peracchi, Padre Galas, dentre tantos outros.
Nada ficou a descoberto. O morador Felizberto, por exemplo, pelo contexto político, tornou-se o “espião de dupla face”. Anotava a cor das fumaças das chaminés para classificar seus residentes de acordo com as tendências políticas: direita ou esquerda; santos ou pecadores. Divino e demoníaco, o xereta foi ameaçado de excomunhão pelo Bispo, preso e torturado por ordem do Interventor Federal. Suicidou-se em agosto. Os arquivos da época foram levados pela grande Enchente de São Miguel. O julgamento popular foi taxativo:
– Felizberto sabia demais.
O Padre não quis que o sepultassem no cemitério do Vale das Borboletas Multicores. Reunião para cá, confusão para lá e, em consideração à esposa, aos filhos e aos parentes, foi velado num galpão e sepultado no fundão do cemitério. Contrariado, o Padre perdeu o crédito e nunca mais foi encontrado. Antes de bater a porta da sacristia, ouviu-se um brado retumbante:
– Sepulcros caiados! Danados ateus e hipócritas!
Impactados pelos insultos, todos ficaram inertes. Contudo, ao final daquela tarde, trovões, relâmpagos e fortes ventos com granizo, vindos da Argentina, arrasaram as plantações do Felizberto. Lá também as ondas da ditadura ceifaram a vida de muitos portenhos. Dizem que um tal de Pe. Jorge Mario protegeu, visitou e escondeu os perseguidos. As Madres da Praça de Maio ainda procuram os desaparecidos.
O interfone tocou. Correios! Carta registrada com um convite para um chique casamento em Buenos Aires. Tudo nas dependências do Hotel Faena, bairro Puerto Madero, em outubro de 2012. Wherther foi. Por que não?! No dia anterior ao casamento, as mulheres foram às compras e os homens aos pontos turísticos da capital. E lá se foram Wherther e Conde Laurindo. Primeiro, ao Museu Manzana de las Luces. Depois, em caminhada compassada, foram à missa na Catedral Metropolitana.
Chegando na hora do sermão, ouviram um pregador dinâmico e bem-humorado discorrer sobre os múltiplos sentidos da palavra “pátria”. Falou da caminhada do povo de Abraão em busca da Terra Prometida, que é a pátria de Deus e para onde todos caminham. Lá não há fronteiras, guerras, mortes, fome e miséria. E as Malvinas? Claro que são argentinas! Assim, o momento pede que se olhe e acolha os pobres, doentes, estrangeiros, discriminados, que se proteja o planeta Terra e se ame os que nele vivem.
Terminado o sermão, os dois brasileiros foram abordados por um grupo de elegantes castelhanos:
– Perdão! Que tal, hermanos? Saindo mais cedo por não terem gostado do Cardeal?!
De pronto, o Conde antecipou-se, dizendo que as mulheres da família estavam esperando para um casamento importante no Porto Madero. Ao que um deles, pedindo perdão, disse que esse pregador estava aprontando, pois andava a pé e no metrô com seus sapatos furados. E mais, nas visitas a sua mana, frita lula à milanesa. Visita pobres e ricos. Como pode? Parece um italiano pobre! E, o pior, tem uma cara de comunista! Acreditam?! Não é verdade?!
– Ah! Esse Cardeal Jorge Mário!
– Hasta luego, hermanos! Despediram-se os dois brasileiros.
Um ano depois, a fumacinha branca e a frase:
– Habemos Papam! Jorge Mario Bergoglio, Cardeal Metropolitano de Buenos Aires, é nosso eleito Papa. O nome é Francisco.
– Quem diria! Que venha o próximo! Quem será o Benedito?!
Habemus Papam!
(Por Roseméri Lorenz)
Este texto que segue também está em vídeo, postado no Instagram: https://www.instagram.com/reel/DJU95bbSfGj/?igsh=dTBwdXQxODFicjlt
Em um elevador que subia,
Me dirigia
A um consultório
Em um prédio, “Que ilusório!”
De medicina integrativa.
Corpo e mente
Naturalmente,
Ou ingenuamente(?),
Integradas.
Juvenal já falava:
– Mens Sana in Corpore Sano!
Não sabia, porém,
O poeta romano
Quão insano ficava
O mundo “ao infinito e além”.
Pois bem,
Conto-lhes aqui o ocorrido:
Entra no elevador
Um senhor,
Bem vivido,
Que, bem humorado,
Diz a todos,
Em tom meio desolado:
– Cuidemo-nos,
Pois de nosso Papa
Oração já não temos.
Ora que irrompe
Do fundo uma voz
Discordante, atroz:
– Pois vai tarde já,
Comunista do inferno,
Lá está, em companhia do demo!”
Furdunço instalado
Instantaneamente
No compartimento lotado.
Mulheres à minha frente,
Homens a meu lado,
Todos visivelmente
Transtornados,
Indignados,
E eu ali, atônita.
Prestes a explodir a bomba atômica
E eu perguntando, silenciosamente,
A Deus, ou a minha mente,
Onde foi que humanidade
Se perdeu, deu errado?
Quem seria o culpado?
Se Francisco merece o inferno,
Com toda sua fé e amor fraterno,
O que resta para nós?
Certamente, mais contras que prós.
Se considerarmos o cumprimento
Só de alguns mandamentos
Já estamos lascados.
Vejo até labaredas
Por todos os lados.
“Amar a Deus sobre todas as coisas”…
Tá, eu amo.
Mas são tantas as coisas, meu Deus,
Que, se não tenho, reclamo.
Tantos comerciais
Querendo que eu compre mais
E ainda o modelo do ano.
Ah, meu Deus…
Olha o que já estou fazendo
Tomando seu santo nome em vão?
Melhor é ir me benzendo…
No poema não conta, não?
“Guardar domingos e dias santos”…
Ah, tá, e pobre faz o quê
Quando o patrão diz amanhã quem vem é você?
Bah, lembrei um agora tão complicado que chega a ser anedótico:
“Não desejar a mulher (ou o homem) do próximo”.
Não sei vocês, meninas,
Mas eu já desejei o marido da Fernanda Lima.
Brincadeiras à parte,
Pensem aqui comigo,
Por que destilar tanto ódio
Mesmo a quem quer ser abrigo?
A quem diz apenas o óbvio
Que a exploração desmedida
Do ambiente é um perigo,
Um atentado à vida.
Por que desejar tanto mal
A quem só pregava o bem?
A quem julgava essencial
Amar sem olhar a quem?
Humildade e justiça social,
Simples assim, sem nhenhenhém.
Francisco foi santo?
Isso eu não digo.
Afinal era humano
Humanamente falível.
Mas exemplo de resistência e força
Humanamente possível.
Parafraseando Manuel Bandeira,
Que vê Irene em sua hora derradeira,
Imagino Francisco chegando no céu:
– Com permiso!
E São Pedro bonachão:
– Entra, Chico! Você não precisa pedir licença.
Autores: Eladio Vilmar Weschenfelder e Roseméri Lorenz. Convidados do site e estão fazendo uma interessante experiência de construção compartilhada de textos. Segue link de colunas que assinam no site: https://www.neipies.com/author/evweschenfelder/ e https://www.neipies.com/author/rosemeri/
Edição: A. R.