Estamos querendo entender como o professor compreende o seu papel e como sua concepção de docência pode interferir, ou não, na qualidade da educação.
-Olá, professor! Podemos conversar um pouco?
-Sim! Sobre o quê?
-Estamos analisando qual a compreensão que as professoras e os professores têm sobre seu papel no ensino.
-Tudo bem!
-Então, professor, qual seu papel?
-Dar aula!
-Não seria ensinar?
-Sim, meu papel é ensinar!
-E o que você faz para ensinar?
-Eu dou aula!
-E o que é dar aula, para você?
-Bem, eu chego na classe, falo sobre o assunto, pergunto se tem alguma dúvida, dou um exercício modelo, dou alguns exercícios de aplicação, tarefa de casa, e depois cobro na prova para ver se aprenderam!
-Onde você aprendeu esta metodologia de trabalho?
-Ih, agora você me pegou… (risos) Não me lembro… Acho que aprendi pela experiência como aluno, desde o Ensino Fundamental…
-Algum professor na Licenciatura chegou a ensinar formalmente esta metodologia?
-Não! Não me recordo.
-E fazendo do jeito que você descreveu, os alunos aprendem?
– Alguns sim, outros não…
-E isto não te incomoda?
-Incomoda um pouco, mas fazer o quê? Depende de cada aluno… A minha parte eu fiz: ensinei! Além disso, como você deve saber, há toda uma cobrança para cumprir o programa por parte dos gestores, coordenadores pedagógicos, colegas do ano seguinte, exames de avaliação externa, metas estabelecidas pelas diretorias de ensino, vestibulares…
-Em relação aos que não aprenderam, você, de fato, ensinou ou, a rigor, teve intenção de ensinar, mas ainda não ensinou?
-Você está dizendo que a culpa é minha?
-De forma alguma! Estamos querendo entender como o professor compreende o seu papel e como sua concepção de docência pode interferir, ou não, na qualidade da educação. Além do mais, culpa nos remete ao campo da moral, da eventual condenação pessoal. Preferimos falar em responsabilidade, que é do campo da ética, onde compreendemos os fenômenos em suas relações.
-Assim fica melhor! Mas, não temos de considerar a realidade socioeconômica do aluno, por exemplo?
-De fato, “o aluno é o aluno e suas circunstâncias” (Ortega y Gasset); é preciso considerar sua realidade, seu contexto, sua história de vida etc. O mesmo vale para o professor e a professora: há as circunstâncias todas do seu trabalho (aluno, classe, equipe, escola, família, território, sistema de ensino, sociedade), todavia há também a concepção, o entendimento que o professor tem de sua atividade, do seu papel!
-Está meio complicado…
-Tomemos, por exemplo, um elemento da realidade de trabalho do professor, a questão do número de alunos em sala de aula: ele é/está sendo o mesmo, independentemente da sua forma de pensar o seu papel, correto?
-Sim, é mais ou menos óbvio…
-Só que a maneira como o professor vai lidar com este dado de realidade, assim como tantos outros dados, depende da maneira como ele compreende o seu papel, correto?
-Não está claro…
-A realidade objetiva, num primeiro momento, não muda de acordo com a concepção que o professor tem de seu papel (40 alunos continuam sendo 40 alunos), mas a forma como ele pensa muda a maneira como vai lidar com a realidade! A realidade é a mesma, mas a maneira como o professor vai lidar com ela depende da concepção que tem.
Afinal, qual seu papel: simplesmente transmitir ou comprometer-se com a aprendizagem de todos?
Se entende que seu papel é simplesmente transmitir o conteúdo, ainda que de forma bem cuidada, criteriosa, vai se dar por satisfeito quando tiver transmitido o que estava previsto. Por outro lado, se ele entende que seu papel é fazer de tudo para que os alunos aprendam, não vai sossegar enquanto tiver alunos sem aprender. É como diz aquele interessante princípio, “aluno a gente não escolhe, aluno a gente acolhe” e trabalha a partir de sua realidade concreta, na direção da intencionalidade da escola. Nosso desejo é que a escola possa, cada vez mais, cumprir sua função social: aprendizagem efetiva, desenvolvimento humano pleno e alegria crítica! Estamos apenas querendo provocar uma reflexão crítica (Freire)!
-Como assim?
-Por detrás de toda prática, de toda ação humana consciente sempre há uma ideia, uma justificativa, uma teoriazinha, não é mesmo? Será que temos consciência de qual a teoria que está, efetivamente (não a concepção apenas desejada, mas aquela internalizada, em especial em função dos longos anos que passamos nos bancos escolares), por detrás da nossa prática em sala de aula? Será que não haveria uma outra forma de compreender (e internalizar) a atividade docente?
-Como assim?
-E se dar aula ou ensinar fosse entendido como comprometer-se em criar condições para o aluno aprender?
-Mas não é a mesma coisa?
-Veja bem, se entendemos que o papel do professor é criar condições para o aluno aprender, estamos assumindo que a tarefa da escola não é meramente transmitir o conhecimento, mas propiciar a aprendizagem. Então, se ainda não aprendeu, a tarefa do professor (pessoal e coletivamente) ainda não terminou!
-Mas isto não é colocar um peso muito grande nas costas do professor?
-Como dissemos antes, não temos a menor intenção de introjetar “culpa e má consciência” no professor! Todavia, também não desejamos poupá-lo de suas responsabilidades! Afinal, o professor pode responder por algo, ou é totalmente determinado a partir de “forças externas”?
-Acho que tem coisas pelas quais podemos responder, sim…
-O que estamos falando é que o professor não pode tudo, mas pode alguma coisa, e este poder pode ser ampliado se ele se qualificar e se articular (Saviani). Entendemos que, apesar dos limites e contradições, sempre há uma Zona de Autonomia Relativa-ZAR, algo que podemos fazer já, que está ao nosso alcance, na nossa governabilidade. O que temos em perspectiva, num primeiro momento, é fundamentalmente uma mudança de atitude, uma mudança de postura, que inclui a mudança de concepção (reforma do pensamento – Morin) e a consequente busca pelas mediações, pelos procedimentos adequados ao novo paradigma!
Entendemos que esta revisão de rota, esta postura contra-hegemônica, contra a lógica da desumanização, pode ser uma iniciativa que fortaleça o professor em sua identidade e potência, gerando um pouco de alegria, neste momento tão difícil de desmonte da educação! Apesar de tudo, e por tudo, continuamos acreditando que “Um Outro Mundo e Uma Outra Educação são Possíveis”!
-Gostei desta ideia!
-Nós também! (risos)
-Vou refletir mais sobre isso!
-Que coisa boa! Muito obrigado, por enquanto!
Observações:
1. Tendo em vista a enorme diversidade das escolas e dos educadores, das redes de ensino, das etapas e modalidades da educação, esta é apenas uma possibilidade de encaminhamento de um diálogo.
2. Há uma peculiaridade da função docente que dificulta muito a mudança da prática instrucionista (professor falando, falando, aluno escutando, escutando ou fingindo que escuta…): nós somos uma das poucas profissões em que os futuros profissionais têm uma longuíssima experiência prévia no futuro campo de atuação.
Quando começamos os primeiros estudos sobre a docência na Licenciatura, temos pelo menos 12 ou 15 anos de vivência no futuro campo profissional! É certo que “do outro lado”, qual seja, como aluno, mas no campo que exercerá a docência (a escola, a sala de aula). Todavia, como sabemos, forma também é conteúdo. Desta maneira, ao iniciarmos o estudo científico sobre a docência já estamos muito familiarizados com o campo de atuação, através de nossa (de)formação nos bancos escolares.
3. No atual estágio da civilização, a escola é um dos poucos espaços que nos restam para fazer um trabalho humanizador “em larga escala”. De um lado, tem um papel da maior relevância em termos Quantitativos, uma vez que praticamente todas as crianças estão na escola (e uma grande parcela da adolescência e da juventude) e por muitos anos.
Por outro lado, em termos Qualitativos, uma vez que as pessoas frequentam a escola não dos 40 aos 54 anos, mas numa fase absolutamente fundamental para o desenvolvimento humano, para a formação da personalidade, e ainda com a possibilidade de participarem de um trabalho com intencionalidade compartilhada, a partir de um Projeto Político-Pedagógico construído coletivamente.
4. Do ponto de vista da instituição, da escola, o que está em jogo?
a) Ter uma clara intencionalidade, expressa no Projeto Político-Pedagógico, que traga um conjunto de valores na perspectiva transformadora;
b) Ter algo para ensinar, ou melhor, ter algo para aluno aprender (considerado importante, relevante, de acordo com a intencionalidade maior e para aquela realidade e aquele ciclo de vida do aluno);
c) Professor querer, de fato, que aluno aprenda;
d) Professor criar as condições (as melhores possíveis) para que aluno aprenda os saberes necessários (cada um e todos os alunos).
5. Do ponto de vista do sistema de ensino, o que se espera? Que favoreça as condições de trabalho para a professora e para o professor: formação inicial e continuada, salário, plano de carreira, valorização social da atividade docente, autonomia didática, número de alunos adequado em sala de aula, quadro funcional completo da escola, gestão democrática, rede de apoio social, atendimento especializado para os alunos quando necessário, etc.
Autor: Prof. Celso dos Santos Vasconcellos. Doutor em Educação pela USP, Mestre em História e Filosofia da Educação pela PUC/SP, Pedagogo, Filósofo, pesquisador, escritor, conferencista, professor convidado de cursos de graduação e pós-graduação. Foi Professor (Educação Fundamental, Ensino Médio, Ensino Superior, Pós-Graduação), Orientador Educacional, Coordenador Pedagógico e Diretor de Escola. É consultor de secretarias de educação, responsável pelo Libertad – Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica. celsovasconcellos@uol.com.br www.celsovasconcellos.com.br
Edição: A. R.