Porque, no fundo, a gente não vive só pra saber… a gente sabe pra viver melhor.
Houve um tempo… ah, como houve! Um tempo em que o saber não cabia na palma da mão, nem nos toques mágicos de uma tela. O conhecimento era feito de papel, cheiro de tinta e encadernações douradas. Era preciso abrir volumes — enormes, pesados, solenes — como quem abre portas encantadas para outros mundos.
A Enciclopédia BARSA… sim, crianças, esse era o nome de um tesouro. Surgida em 1964, ela era um mapa do saber impresso, traduzindo o mundo para a língua portuguesa.
Veio até nós como quem oferece uma ponte entre a curiosidade e o mistério. E seguiu viva, folheada, consultada, reverenciada, até se despedir silenciosamente, no começo dos anos 2000, quando a internet começou a soprar seus ventos de mudança.
Não era vendida em lojas. Ah, não! Ela batia à porta… ou melhor, quem batia eram os vendedores — sujeitos de fala macia, olhos brilhantes e pastas recheadas de promessas, instigando aos sonhos. E então, lá estávamos nós, crianças curiosas, espiando da fresta da porta enquanto nossos pais ouviam sobre a possibilidade de ter, dentro de casa, todo o saber do mundo — ou quase.
Meu pai Nelson e minha mãe Geny cortavam na carne, para poder promover o acesso a esse portal.
Numa época em que não havia Google, ChatGPT, inteligência artificial, nem Wi-Fi que hoje parece ar mais que se respira… nós tínhamos a BARSA. E como ela brilhava na estante! Um monumento silencioso, esperando que alguém viesse lhe perguntar qualquer coisa: a biografia do genial Machado de Assis? Quantas estrelas há na Via Láctea? Quem descobriu a penicilina? Como surgiu o sapiens? Por que o céu é azul? Por que o mar tem ondas?
Mas, vejam, o saber não era tudo… Porque, no fundo, o que a gente mais fazia era viver.
Ah, minha infância… Era feita de terra, de poças depois da chuva — onde o céu descia pra brincar com a gente. De mãos sujas, joelhos ralados e olhos que brilhavam na caça aos vaga-lumes, esses pequenos pirilampos que pareciam estrelas fugindo do céu.
Tinha bola — de meia, de couro, de gude. Bicicleta, skate feito à mão, carrinho de lomba feito com o coração até gastar o sol. Bolinha de guerra, esconde-esconde e aquela misteriosa missão de nunca ser achado. A escola era mais do que lição: era recreio, era merenda da dona Palmira, era amizade servida em pão com goiabada, arroz doce, sagu, creme e sonhos….
Pintávamos o mundo com tinta de barro e pincéis feitos dos próprios dedos. Na televisão — que era pouca e preta-e-branca — desfilavam heróis como Rin Tin Tin, e Maia, o elefante, que hoje poucos saberiam dizer se era desenho, filme, sonho ou pura invenção. Tinha o maravilhoso Chacrinha, Tarzan, Jane e a incrível macaca Chita.
Havia as rodas de chimarrão, onde os vizinhos falavam num dialeto que misturava italiano, português e carinho. Na mesa fumegava uma sopa de anholine — ou seria capeletti? — pouco importa, porque o gosto era de abraço.
O cinema… ah, o cinema! A primeira vez, sentado naquelas poltronas vermelhas, olhos arregalados para os filmes do Teixeirinha, do Mazzaropi… e o mundo se tornava ainda maior do que aquele que a BARSA contava.
Jogava-se basquete, vôlei, futebol — todos os dias, como quem tentava, sem saber, marcar um gol contra o tempo.
E hoje, já professor, escritor, contador de histórias e mediador de sonhos, olho para essas novas gerações e penso: que sorte vocês têm de ter o mundo nas pontas dos dedos… Mas que sorte tive eu de ter tido o mundo inteiro dentro de um livro.
E talvez — quem sabe? — seja disso que se trata a vida: de um lado, a tecnologia que informa; do outro, a memória que forma. Porque, no fundo, a gente não vive só pra saber… a gente sabe pra viver melhor.”
Autor: Mauro Gaglieti. Também escreveu e publicou no site “Filme Divertidamente: faz bem para adultos, crianças, adolescentes e jovens”: www.neipies.com/filme-divertida-mente-faz-bem-para-adultos-criancas-adolescentes-e-jovens/
Edição: A. R.