Com uma fala pausada e arrastada típica do seu país,
o velho agradeceu polidamente o título, expressou mais
uma vez seus sonhos de que o mundo possa ser melhor e mais justo.
Saiu como entrou, em um profundo silêncio, levando consigo
seu mundo e sua dignidade. Esse velho era José Saramago.

 

Nestes tempos em que nossos homens públicos adotam a política da tolerância zero em relação aos seus adversários e perdoam-se e si mesmos refestelando-se nos salões das ricas famílias, à mesa de finos talheres e iguarias, protegidos por um exército de advogados, enquanto arruínam os destinos da nossa Nação, faz-se necessário, por uma simples questão de sobrevivência, construir sonhos ou acalentar lembranças.

E com eles e elas render homenagens àqueles que fazem a diferença em um mundo que clama por mudanças.

O que relatarei constitui uma lembrança autônoma, dessas que fustigam continuamente. Inquietou-me pela primeira vez quando, alguns dias após a ocorrência do fato, parei para refletir sobre a qualidade das nossas lideranças públicas, das boas e más características de todos os que, de alguma forma, vivem das palavras e da imagem. Dentre as más, certamente, a vaidade.

Vaidade produtiva ou vaidade destrutiva – Fabio Nemer

Estou falando da lembrança de uma festa, onde em meio à balbúrdia do salão apinhado de homens e mulheres um senhor inicia com passos lentos, acompanhado por seus anfitriões, o caminho que o levará à mesa de honra onde receberá o título de Doutor Honoris Causa. É o quinto título dessa espécie que receberá em terras brasileiras. Seu rosto marcado pela vida carrega um indisfarçável sentimento de cansaço, não um cansaço físico, desses que advém após horas de trabalho ou uma viagem longa, mas sim um cansaço espiritual. Há uma clara falta de sintonia entre este senhor e o mundo de pessoas que o cercam, evidente no desconforto que procura esconder.

Afinal este homem, que não teve a fortuna de beneficiar-se de estudos adiantados, não concluindo sequer o curso ginasial – chamado liceal em seu país -, que tomou contato com os livros através das bibliotecas públicas e que criou-se em uma família pobre em uma aldeia no interior de sua terra, que vagou por uma infinidade de profissões e ofícios para sustentar-se em um mundo que talvez nunca o compreenderá, receberá mais um título cercado de pompas e um assédio sufocante da imprensa por ter conseguido driblar com as palavras o destino traçado pela realidade, afirmando a sua humanidade, os seus sonhos e os seus sentimentos através dos livros.

A cena foi paradoxal, pois em meio às palmas e assovios pesava um profundo silêncio – dois mundos chocando-se de forma constrangedora: de um lado um senhor solitário, um velho de mãos calejadas e olhar cansado, carregando sua história simples, austera, marcada por valores e projetos, lutas e desencontros, terra e suor, por uma humildade inabalável e uma crença na necessidade de reafirmar cotidianamente a cidadania, e de outro uma massa difusa, senhores vestidos com suas togas, cerimônia, formalidades, clichês, discursos solenes e estranhos, pompas e senhoras pintadas e risonhas.

filme-homenagem que busca olhar o mundo pelas lentes desassossegadas de josé saramago. documentário que revive o redemoinho de sensações, palavras e lembranças deixadas em quem o sentiu por perto. um humanista, que usou os microfones de um escritor, para gritar sobre o nosso mundo.

Dizem que as coisas da realidade sensível são nos apresentadas através dos sentimentos. Presenciei tudo tomado de uma estranha tristeza, observando a sociedade frívola, consumista, artificial e deslumbrada daquele final de milênio na Universidade, este reino onde impera a rotina e a bajulação, premiando um filho de agricultores pobres e analfabetos, velho, autodidata e ainda “sujo” dos obstáculos que a vida lhe ofereceu.

Com uma fala pausada e arrastada típica do seu país, o velho agradeceu polidamente o título, expressou mais uma vez seus sonhos de que o mundo possa ser melhor e mais justo. Saiu como entrou, em um profundo silêncio, levando consigo seu mundo e sua dignidade.

Dali, dentro de alguns dias, voltaria para outra ilha, a de Lanzarote nas Canárias espanholas, em autoexílio onde continuou redigindo até 2010 de forma incansável seus textos, semeando suas parábolas e metáforas. Havia cumprido mais uma escala de compromissos desde que ganhara o prêmio máximo da literatura mundial. Agora, em suas palavras, queria ficar só.

Desde então, pego-me, de tempos em tempos, a refletir sobre a concorrida cerimônia e seus significados, sobre o mundo em que vivemos com suas misérias e desencantamentos, a descrença de alguns, a razão cínica de muitos e o sentimento de profunda necessidade de reinventar o futuro para além dos significados que nos movem atualmente.

O velho chama-se José Saramago, era 18 de agosto de 1999, eu tinha 26 anos e estava na terceira fila do Auditório da Reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina.

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