Cultura de direitos humanos na escola formal?

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Cultura de direitos humanos se tornará
uma realidade quando mudarem substancialmente
as práticas da educação no Brasil.

A escola pública e democrática é hoje uma conquista institucionalizada mas, na prática, ainda está longe de ser realidade plenamente vivenciada na escola. A escolha democrática das direções escolares, por exemplo, ainda não permitiu condições democráticas de organizar as escolas a partir de uma base curricular, de propostas pedagógicas, de metas e da organização do quadro dos professores.

Há que se considerar ainda, por vezes, a forma autoritária como os gestores da educação (secretarias municipais e estaduais de educação) organizam suas redes de ensino, sem o protagonismo da comunidade escolar, sobretudo, dos professores e alunos. Há que se considerar também que os alunos e pais ainda não participam de forma ativa na orientação e condução das práticas pedagógicas no cotidiano da vida escolar.

A escola, lugar de significativas e distintas aprendizagens, é também um grande laboratório de exercício de poder. Cotidianamente, através das relações interpessoais, administra as suas tensões internas, fortemente influenciadas pelo poder externo (dos governos e da comunidade). E o professor e os alunos, peças fundamentais, nem sempre são considerados em sua dimensão de pessoa humana e de sujeitos de direitos e dignidade.

As crianças e adolescentes de hoje, no atual momento histórico, são tratadas como sujeitos de direitos, a partir dos arcabouços jurídicos e legais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Declaração Universal dos Direitos da Criança, a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) de 1990, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos de 21/03/2009, o Programa Mundial para Educação em Direitos Humanos (2004), dentre outros.

Para além de todo arcabouço legal, há a necessidade e uma cobrança social para avançarmos na implantação de uma cultura de direitos humanos e cidadania, a partir das próprias escolas. Estudos e pesquisas apontam que as próprias escolas poderiam ser lugares de vivências de uma cultura de paz, de superação e enfrentamento da violência e de promoção da solidariedade. A escola é um espaço de reconhecimento e promoção de cidadania, que se dá através da construção do conhecimento e da convivência social.

Lúcia Afonso (2011, p.5), afirma que:

 “embora o direito à educação seja reconhecido e garantido por lei, a escola ainda reflete as profundas desigualdades econômicas, sociais e culturais do contexto brasileiro e, se há de haver um projeto social para o fortalecimento a expansão deste direito, ele só poderá se realizar através de uma forte articulação entre educação e cidadania. É por isso que argumentamos que a escola tem papel preponderante na construção de uma cultura de promoção e garantia dos direitos humanos”.

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos vem trazer justamente os princípios e as linhas de ação que deveriam nortear a educação em direitos humanos não como disciplina ou área curricular específica, mas como um dos eixos norteadores da educação básica e de todo currículo escolar.

Destacamos dois princípios do Plano Nacional de Educação (2007, p.25) que sugerem que:

 “…a construção de uma cultura de direitos humanos é de especial importância em todos os espaços sociais. A escola tem um papel fundamental na construção desta cultura, contribuindo na formação de sujeitos de direito, mentalidades e identidades individuais e coletivas”. E ainda que: “a educação em direitos humanos, sobretudo no âmbito escolar, deve ser concebida de forma articulada ao combate ao racismo, sexismo, discriminação social, cultural, religiosa e outras formas de discriminação presentes na sociedade brasileira”.

Desconhecemos outra maneira de mudar culturalmente conceitos ou ideias senão pela educação. A educação em direitos humanos significa educar para a democracia, oportunizando que os cidadãos tenham noção de seus direitos e deveres e que lutem por eles. É papel da escola, e da educação, contribuir para a compreensão do mundo, para uma melhor inserção nele.

Mara Regina Zluhn (2013, p.32) pedagoga, especialista em Orientação Educacional e Mestre em Educação e Cultura, ao justificar a importância da vivência e da cidadania no cotidiano escolar, afirma que:

“… temos que considerar que estamos vivendo um momento de reestruturações e reavaliações culturais e sociais, de mutações importantes nas experiências coletivas (o Brasil é atualmente a 8ª economia mundial). Temos de adequar nossa prática pedagógica dando ênfase aos conteúdos historicamente construídos pela humanidade e retirando extratos, para fins didáticos, de uma educação que expresse as verdades humanas e seus dilemas fundamentais, com vistas para a implantação de uma escola democrática e cidadã, já que nas sociedades contemporâneas a escola é o principal lugar de estruturação de concepções de mundo e de consciência social, de consolidação de valores, da formação para a cidadania, de constituição de sujeitos sociais e de desenvolvimento das práticas pedagógicas”.

A cultura de direitos humanos promove condições em que ocorram a tolerância, o diálogo, a cidadania, a diversidade. Deve também permitir a liberdade de organização e luta aos grupos organizados em torno de seus direitos

Educação em direitos humanos não é somente um conteúdo a ser ensinado, mas pressupõe, antes de tudo, a vivência de valores e atitudes que cultivem a preservação da vida, das singularidades e das diferenças. Para mudarmos atitudes e conceitos precisamos ser motivados, sensibilizados e estimulados a compreender o ser humano em suas diferentes situações e realidades.

É preciso considerar que um dos maiores fatores que dificultam a promoção de uma cultura de direitos humanos nas nossas escolas é o desconhecimento da legislação mundial e brasileira sobre o tema, bem como a falta de entendimentos dos próprios conceitos de direitos humanos e de educação em direitos humanos.  Neste sentido, apontamos, neste artigo, marco conceitual sobre direitos humanos e educação em direitos humanos como condição indispensável para qualquer avanço na implantação dos mesmos nas escolas formais do Brasil.

Apontaremos, ainda, a necessidade de formação e debate permanente com os professores e professoras para que, assimilando os conceitos, possam promover processos pedagógicos capazes de traduzir, na prática cotidiana das escolas, aprendizagens e vivências de cidadania e direitos humanos. Apontaremos, ainda, mudanças de posturas dentro das escolas para que se promova a democracia, o respeito e a dignidade de todos os sujeitos que se envolvem na educação.

Cultura de direitos humanos

O conceito de direitos humanos faz-se historicamente, assumindo diferentes abordagens e perspectivas, gerando diferentes posturas e compreensões. Nasce, contudo, a partir da consciência e necessidade de preservar a vida e tudo o que nela está imbricado. Ao longo dos tempos, o conceito foi sendo construído culturalmente como se os sujeitos destes direitos fossem os outros, aqueles que estão numa situação de extrema indignidade, e nunca a gente (eu, você e nós). Há, então, a necessidade de compreender melhor o conceito de direitos humanos para que dele nos sintamos parte.

Sob o ponto de vista da compreensão histórica, os direitos humanos constituem-se a partir do reconhecimento, muito antes de constituírem faculdade de um ou de outrem. A defesa da vida, que também defesa da dignidade humana, engloba o que a humanidade, através de muita luta e conquista, reconheceu como direitos humanos. O que vem a ser dignidade humana? É difícil definir, mas entendemos quando ela falta a alguém (como aquilo que define a própria noção de humanidade, enquanto condições mínimas, básicas e elementares para sermos gente). O nosso cotidiano está repleto de infinitas realidades de indignidade, basta ativar a nossa sensibilidade e o nosso olhar.

A mesma cultura que nos fez acreditar que direitos humanos não são os nossos direitos de ser gente (de ser humano) também alimenta a falsa ideia de que, ao afirmamos os direitos das pessoas, estaríamos abrindo mão de seus deveres. Sempre nos foi dito, mesmo que não explicitamente, que temos mais deveres a serem cumpridos do que direitos a serem gozados, usufruídos. Muitas vezes entenderam-se direitos como privilégios de uma classe social, povo ou nação, em detrimento dos demais. Ocorre que, a cada direito que conquistamos, naturalmente, sem dizê-lo, está imbricado um dever. Direitos e deveres chegam juntos, não existem separados como muitos supõem.

Mas como criar identidade com direitos humanos? É preciso considerar a si mesmo e aos outros sujeitos de direitos, de liberdade, de dignidade: ao mesmo tempo diferentes e iguais uns em relação aos outros. O que todos temos em comum é que somos humanos e comungarmos das mesmas necessidades.

Educação em e para direitos humanos

A educação em e para os direitos humanos é mediação para a humanização das pessoas. Através dela podem ser construídas novas formas de relação interpessoal e com o ambiente cultural e natural que ponham a dignidade da pessoa, sua promoção e respeito, no centro da agenda.

Falar de educação em direitos humanos é tomar direitos humanos como tema e como abordagem de todo o processo educativo de tal sorte a fazer da educação a concretização de um dos direitos humanos e também mediação para a realização do conjunto dos direitos humanos. Falar de educação para os direitos humanos é compreender que a educação ocorre num contexto ainda marcado por processos de violação dos direitos, daí que, o papel central de educação está na formação de pessoas que reconheçam as outras como seres de dignidade e direitos.

A educação em e para os direitos humanos está desafiada a promover a diversidade, a denunciar todas as formas de violação, a viabilizar a solidariedade com (e entre) os mais fracos e as vítimas, a incidir na organização e na luta por justiça, a contribuir para realizar a paz e a boa convivência, enfim, a abrir espaço e tempo oportunos para que cada pessoa seja, com as outras, mais feliz.

Neste sentido, a educação em e para os direitos humanos pode ser feita em todo tipo de espaço pedagógico: grupos populares, organizações, movimentos sociais, escolas, igrejas, academias. Enfim, ela tem lugar sempre que pessoas e grupos se propuserem a aprender com as outras.

Aprender não é somente acumular conteúdos, mesmo que seja fundamental conhecer e compreender criticamente diversos conteúdos. Aprender é sustentar posturas, subsidiar o desenvolvimento de atitudes e construir sujeitos pluridimensionais agentes da história.

Neste sentido, a educação em e para os direitos humanos constitui-se em mediação para a realização de práticas pedagógicas capazes de mobilizar aprendizagens que, acima de tudo, podem se traduzir em engajamento efetivo de cada pessoa na luta pela realização de todos os direitos humanos de todas as pessoas.

Sujeitos de direitos na educação

A educação, concebida sob a ótica dos direitos humanos, pressupõe o entendimento de sujeitos pluridimensionais, que tem como exigência a sua humanização. Entendemos humanização como necessidade de tornar o ser humano melhor, através do conhecimento e das vivências que promovam a solidariedade, a cooperação, a ética e o respeito às diferenças.

A escola pode ser o lugar para promover a construção do conhecimento e a socialização como estratégias fundamentais para promover a construção de seres humanos mais humanizados. O conhecimento pode nos constituir sujeitos menos ignorantes, mais democráticos, menos estúpidos e mais sociáveis, exigências fundamentais do contexto contemporâneo onde reinam a violência, a corrupção e a competição desmedidas.

 Carbonari (2014, p.89) destaca que:

 “processos educativos desse tipo compreendem que a inteligência, o conhecimento e o saber não são dádiva ou acaso da sorte; e que além de competências, a educação há de promover a construção de atitudes e posturas de vida – tem exigência ética. Neste sentido, os processos educativos estão inseridos no amplo espectro da interação humana e se desdobram em aprendizagens e vivências diversas. A educação em direitos humanos que é construída na base de uma compreensão pluridimensional do sujeito de direitos promove os espaços de aprendizagem como exercício de reflexão e ação críticas. Ela exige acesso ao saber acumulado historicamente pela humanidade e sua reconstrução a partir das vivências, gerando a possibilidade de configurar escolhas, a implementação de processos e desenvolvimento de atitudes coerentes e comprometidas”.

Resumindo, a pedagogia da educação em direitos humanos pressupõe a construção da participação, a compreensão dos dissensos e dos conflitos, a abertura para o mundo como compromisso concreto com os contextos nos quais se dão os processos educativos.

Ainda Carbonari (2014, p.90) comenta que:

“A educação em direitos humanos, ou toma os sujeitos implicados no processo desde dentro e os põe dentro das dinâmicas que abre, ou resta inviabilizada por não atingir sua finalidade básica, que é exatamente a de abrir-se para os sujeitos pluridimensionais que estão em interação. Um exemplo talvez ajude a ilustrar: um estudo sobre violência contra a mulher não é apenas a identificação de uma situação estatística ou cientificamente descrita e catalogada; faz da mulher concreta, aquela que é vítima da violência, um sujeito presente no intervalo da relação educativa – não é apenas um sujeito abstrato ou objeto de estudo”.

Considerações finais

O desafio está posto para as escolas públicas formais deste nosso país. Em tempos que precisamos repensar a função e o papel social da escola, sugerimos o caminho da humanização, através de conhecimentos significativos e de relações interpessoais mais interessantes entre os sujeitos envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem. Neste contexto, a importância e a necessidade da formação permanente e continuada dos professores e professoras e a mudança de práticas de aprendizagem que incluam a participação ativa dos alunos e alunas.

Paulo Freire priorizou a relação entre os sujeitos o aspecto mais relevante para os processos de ensino-aprendizagem, concluindo que “ninguém educa ninguém. Ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.

Algumas instituições de ensino público, por suas práticas contraditórias e autoritárias, minimizam o alcance e a importância das conquistas democráticas. É claro que exercitar cotidianamente a democracia, como se faz na escola, não é uma tarefa fácil. Para muitos, ela não passa de verborragia. Para outros, incansável exercício, prática de inclusão e respeito a todos, mesmo enfrentando as contradições do discurso e da prática.

Um dos maiores desafios de tornar as escolas públicas lugares de vivência e convivência de uma cultura de direitos humanos está na própria superação de sua estrutura arbitrária e pouco democrática. Se os professores ainda não conhecem suficientemente a democracia e a liberdade, como irão ensinar estes valores aos seus alunos?

Acreditamos que nossas escolas deveriam ser espaços de humanização. Humanizar-se é tornar-se melhor ser humano, a partir do conhecimento. As escolas deveriam cuidar, substancialmente, de duas dimensões inerentes ao ser humano e à própria escola: a integração e socialização das pessoas e a construção de conhecimentos. Se estas dimensões não estiverem bem organizadas nas escolas, elas esvaziam seu sentido e perdem sua importância.

A escola nunca deveria se distanciar da vida concreta das pessoas, pois esta deve e pode ser aperfeiçoada através do conhecimento. Acreditamos que as finalidades da escola deveriam sempre convergir. Anísio Teixeira, no ano de 1934, ao discutir as finalidades da vida e da educação inicia dizendo que “a única finalidade da vida é mais vida. Se me perguntarem o que é essa vida, eu lhes direi que é mais liberdade e mais felicidade. São vagos os termos, mas, nem por isso eles deixam de ter sentido para cada um de nós”. Concluiu dizendo: “a finalidade da educação se confunde com a finalidade da vida”.

A cultura pela dignidade humana promove condições em que ocorra a tolerância, o diálogo, a cidadania, a diversidade. Deve também permitir e incentivar a organização e luta coletiva por direitos. Deve exigir um Estado protetor e promotor de direitos humanos, e não violador da vivência da cidadania e das liberdades. A educação em e para os direitos humanos é mediação para a humanização das pessoas. Através dela podem ser construídas novas formas de relação interpessoal e com o ambiente cultural e natural que ponham a dignidade da pessoa, sua promoção e respeito, no centro da agenda.

Direitos humanos precisam ser aprendidos e ensinados. Aprender é sustentar posturas, subsidiar o desenvolvimento de atitudes e construir sujeitos pluridimensionais agentes da história. Neste sentido, a educação em e para os direitos humanos busca incentivar e motivar para o engajamento efetivo de cada pessoa e de todos na luta pela realização de todos os direitos humanos de todas as pessoas.

O exercício do poder democrático é um dever da escola e um legado que ela deve deixar para seus alunos e para a sociedade como um todo; esta é sua contribuição para a consolidação da democracia no Brasil. Qualidade na educação será uma realidade quando tratarmos gente como gente deve ser tratada e quando tomarmos a democracia como a base de nossas vivências e relações. Qualidade de educação se mede pelo tipo de relações que acontecem entre todos os sujeitos da educação (alunos, professores, pais e comunidades que cercam a escola). Estas relações devem buscar a humanização de todos através do conhecimento. Tornar-nos seres humanos melhores é o nosso maior desafio!

Cultura de direitos humanos se tornará uma realidade quando mudarem substancialmente as práticas da educação no Brasil. Todos os envolvidos na educação (gestores, professores, equipes diretivas) devem mudar as suas posturas autoritárias, para promover a democracia, o respeito e a consideração de todos como seres aprendentes.

A formação, o estudo e o debate permanente sobre direitos humanos nas escolas públicas, envolvendo professores, pais e alunos, são os caminhos para a mudança das práticas e vivências pedagógicas que façam com que a própria escola seja um lugar de vivências de direitos humanos, de cidadania e de democracia. Para superarmos a ignorância e os preconceitos que envolvem a cultura de direitos humanos, os caminhos são o conhecimento,  a apropriação dos conceitos e a vivência de práticas pedagógicas democráticas e inclusivas. Assim, direitos humanos, idealizados em legislações (declarações, tratados, estatutos e programas) poderão tornar-se cultura de direitos humanos.


EVC – Práticas Educacionais em Direitos Humanos na Escola



Referências
ANDRADE, Jair. REDIN, Giuliana (orgs) Múltiplos olhares sobre os direitos humanos. Passo Fundo: Ed. IMED, 2008.
AFONSO, Lúcia apud, org. Keila Deslandes e Erika Lourenço; Por uma cultura de direitos humanos na escola: princípios, meios e fins. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2011.
CARBONARI, Paulo César; Direitos Humanos: tudo a ver com nossa vida. Passo Fundo: Berthier, 2012.
CARBONARI, Paulo César; Direitos Humanos: sugestões pedagógicas. Brasília-DF: 2ª ed. Revista e ampl – IFIBE, 2014.
ZLUHN, Mara Regina; Educação em direitos humanos na escola básica. Indaial: Uniasselvi, 2013.
Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos / Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. – Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007.

Artigo apresentado como parte da Conclusão de Curso Orientação Escolar, Uniasselvi.

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