O mais difícil para o estudante de filosofia é esse passo:
saber que só vai poder ser filósofo se puder se perder
e se reconstruir de modo tão incansável que corre
o risco de ver sua vida entrar em pane.

 

Há uma esperança matreira na cabeça de muitos estudantes de filosofia. Eles imaginam que podem entrar num curso de filosofia e saírem sabendo mais e, no entanto, com a mesma identidade. Ora, até podem, mas se isso acontece, não entraram num curso de filosofia, mas em um bacharelado de um algum saber de ordem não filosófica.

A filosofia obriga à troca de identidade.

A filosofia, disse Platão, é um saber morrer. Entrar no curso de filosofia e realmente cursá-lo, é um aprendizado para a morte que, enfim, em algum nível deve ocorrer realmente. A pessoa que efetivamente faz o curso de filosofia sai como outro. O anterior, o que entrou, realmente morre. A filosofia obriga a essa passagem, a essa troca de identidade, a essa, digamos, conversão. Conversão à doutrina dos homens e mulheres sem guardas.

O trabalho do filosofar não se faz sem o trabalho de adentrar o pensamento de alguns filósofos. Essa entrada é uma armadilha. Entramos no pensamento de filósofos consagrados, mas então percebemos que só podemos assim realmente fazer se deixarmos as coisas se inverterem: é o filósofo que adentra em nós e nos utiliza para voltar a pensar. Perdemos nossa identidade nisso.

Quando voltamos a nós mesmos, não temos mais nenhuma garantia de que somos nós mesmos. O processo de quatro anos de filosofia em uma boa escola é desse tipo, uma contínua abertura de alma de modo que, ao final, não fazemos mais ideia de quem éramos quando demos os primeiros passos.

Acreditamos e desacreditamos. Utilizamos pensamentos que execrávamos. Viemos a amar filósofos que não conhecíamos, e outros que arrependemos amargamente de amar. Em geral, estes que nos deram arrependimento, são os que ainda amamos.

“Só tem rumo o jovem filósofo que não é filósofo […]”

Ao final de quatro anos, somos alguma coisa suada, cansada, renascida. Alguma coisa sem rumo. Só tem rumo o jovem filósofo que não é filósofo, mas apenas um filisteu da cultura procurando bolsa de estudos. O que realmente fez o curso de filosofia pode procurar o mestrado, mas está de pernas bambas, atordoado por excesso de consciência.

Por isso o curso de filosofia implica em inteligência e certa ingenuidade. Não coragem, e sim ingenuidade. Devemos ser suficientemente tolos para nele estar e nos deixar levar por seres de outro mundo que querem adentrar nosso cérebro. Temos de ser suficientemente tolos, talvez volúveis, para na hora em que estamos já casados com um filósofo, o deixemos de lado para traí-lo com outro.

A filosofia é, em seu aprendizado básico, um jogo de traições, de amores desfeitos e de busca do sangue da virgem. A filosofia tem algo de vampirismo. Não se faz filosofia com militância e juras de amor eterno que podem ser confiáveis. Militantes eternos são energúmenos eternos.

“No máximo será bolsista.”

O mais difícil para o estudante de filosofia é esse passo: saber que só vai poder ser filósofo se puder se perder e se reconstruir de modo tão incansável que corre o risco de ver sua vida entrar em pane. Por isso, quando algum aluno diz que pode entender a aula, mas continua com as suas crenças, eu sei que ele não será filósofo. No máximo será bolsista.

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